Wilson Nogueira**
A cidade de Parintins (AM) celebra hoje, terça-feira, 167 anos de fundação, mas suas terras abrigam o colonizador desde 1796, quando ali se instalou português Pedro Cordovil na companhia de alguns escravos, para se dedicar à pesca de pirarucu, quelônios e peixes-bois.
Antes, essa e outras ilhas próximas estiveram habitadas somente por indígenas, em sua maioria denominados pelo europeu de Tupinambarana (Tupinambás falsos ou não puros).
De Cordovil em diante, a ilha passou pelos seguintes topônimos: Tupinambarana (1796), Vila Nova da Rainha (1803), Freguesia de Nossa Senhora do Carmo de Tupinambarana (1833), Freguesia de Vila Bela da Imperatriz (1848) e Parintins (1853).
A lei em que aparece a denominação Parintins é de 1853, mas ela se refere à determinação de uma lei anterior, de 1952, que elevou para a categoria de vila e município a Freguesia de Vila Bela da Imperatriz.
A dança dos nomes reflete o puxa-saquismo e as inconstâncias dos ventos áulicos na direção da Corte portuguesa e do império do Brasil.
O certo é que hoje, essa pequena ilha fluvial, situada na margem direita do rio Amazonas, está na memória e no cotidiano dos seus atuais habitantes com os nomes de Tupinambarana e Parintins.
O primeira em homenagem aos Tupinambás, que se tornaram aliados dos portugueses na invasão das terras brasilis do litoral.
O segundo, para nos lembrar a renhida resistência dos parintitins (esse povo se autodenomina Kagwahiva), que se refugiaram nos sertões da Amazônia para não entregar o pescoço ao algoz.
Os parintintins atravessaram terras tomadas pelos portugueses até se depararem com a invasão espanhola, no Peru, mas de lá retornaram, porque também não se submeteram à escravidão.
Na ilha à qual emprestam nome, é possível que sequer tenham pisado. É mais provável que tenham passado ao largo, em terras firmas próximas, porém, mais centrais, a partir do Tapajós.
Mas a firmeza na defesa das suas terras os fez temidos, principalmente pela boca dos Mundurucus, que os combatiam estimulados pelos colonizadores. Foram os mudurucus que os apelidaram de parintintins.
Por questão de sobrevivência, os parintintins arriaram seus arcos, flechas e lanças em terras da calha do Madeira, onde foram pacificados por sertanistas do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), entre eles o antropólogo alemão Kurt Nimuendaju e o sertanista Joaquim Gondim, que atuaram em um posto do alto rio Maici.
O entreposto de pesca e salga, ao longo do tempo, serviu a outros interesses, entre os quais, ao aprisionamento de índios, a postos avançados de catequese cristã, da coleta de drogas do sertão, do extrativismo vegetal e da criação de gado.
A ilha, embora localizada em área estratégica para o controle do tráfego através do Amazonas, foi poupada pela Cabanagem, a revolução de pretos, índios, crioulos, caboclos e brancos desafortunados, ocorrida de 1835 a 1840, contra a regência do Brasil.
Os porquês dessa decisão cabana são contraditórios.
Mas, foram os parintinenses, aliados aos silvenses, que se articularam pelo reconhecimento e instalação da Província do Amazonas, vinda em 1850.
O processo sociocultural revela que Parintins, na sua formação e consolidação, não destoa das cidades forjadas na efervescência colonial, como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Belém, Manaus, Maués etc.
Esses lugares de ocas e malocas foram invadidos e transformados em lugarejos, aldeias, freguesias, vilas, cidades, metrópoles e megalópoles, batizados, em sua maioria, com nomes cristãos e europeus.
No caso de Parintins, ocorreu a dança de nomes ao ritmo do leva-e-traz da política áulica.
Enfim, 1853 sopram os ventos do noçaquém (termo saterté-mawé que corresponde ao que designa o paraíso cristão) e a ilha é rebatizada com o nome Parintins, pelo qual também eram conhecidos os Kagwahiva.
Viajando pela história, ainda que em marcha match , não seria forçoso afirmar que Parintins simboliza resistência à opressão e às injustiças, e pelo acolhimento da diversidade sociocultural.
Suas ruas estão apinhadas de rostinhos com traços indígenas, afros, caboclos, nordestinos, sulistas, judeus, japoneses, gregos e italianos; sua arquitetura é eclética; sua culinária mistura gostos e cheiros da floresta e do mundo.
Sua festa mais conhecida, o festival folclórico liderado pelos bois-bumbás Garantido e Caprichoso, é uma vitrine desse caldeirão cultural, muito bem representado pela Catirina, a personagem libertária que dança em várias festas populares pelo Brasil afora, e que sequer tem um tiquito de inveja da Amélia, a mulher de verdade.
Então, se hoje não podemos celebrar o bem viver almejado pelos nossos ancestrais indígenas, que nos enchamos do sentimento e disposição para alcançá-lo o mais breve possível, antes que céu desabe sobre nós, como nos adverte a cosmologia ianomâmi.
*Versos da Cantiga de Parintins, de Chico da Silva e Fred Góes
**O autor é jornalista, escritor e sociólogo
Foto: Reprodução