Kati em demonstração com arco e flecha
Wilson Nogueira (texto e fotos)
A pesca da tartaruga com o uso de arco e flecha é secular entre índios e ribeirinhos nos lagos e rios amazônicos. A modalidade antecede à captura desses animais com redes ou com viração massiva, com objetivo comercial.
O flechador de tartaruga é o exímio manejador do arco e da flecha, cujo aprendizado se dá desde a infância, por meio da observação atenta aos movimentos dos adultos em atividade e aos do ambiente. É importante saber, desde então, que esse tipo de pescaria exige arco e a flecha especiais.
O arco tem ao menos dois metros e a flecha um metro e meio. O primeiro deve ser feito de madeira resiliente, preferencialmente de pau-d´arco. A flecha possui um pequeno arpão de ferro batido, com uma saliência que se encaixa na ponta da haste derivada da flecheira.
No momento em que penetra no casco da tartaruga, o arpão se desprende da ponta da flecha, porém, fica vinculado a ela por uma corda de ao menos dez metros. A flecha ainda conta com um leme feito de pena de pato, para lhe dar mais estabilidade durante a navegação.
O segredo da eficiência dessa pescaria envolve, além da feitura e manejo corretos desses equipamentos, uma afinada sintonia dos sentidos do pescador com o ambiente. Isso porque a pontaria ao alvo, que geralmente estará a uma distância entre trinta e cinquenta metros, não é feita horizontalmente. Nessa pescaria, a flecha é lançada para o alto em trajetória diagonal para, ao atingir a distância estimada, cair vertiginosamente e atingir o casco da tartaruga com peso suficiente para rompê-lo.
Benedito dos Santos Ferreira, o Kati, que vez por outra é surpreendido com uma tartaruga descendo o rio Amazonas, disse que aprendeu o ofício com os seus parentes, pescadores do lago do Xibuí, a duas horas de viagem de Parintins (AM) em canoa empurrada por motor de rabeta. “É preciso calcular a direção e a velocidade do vento, para então colocar a força adequada no arco e disparar a flecha”, explica.
O pescador experiente também calcula com certa precisão os intervalos em que as tartarugas sobem até o espelho d´água para respirar. “A duração e a extensão entre uma boiada e outra depende do tamanho do animal e da velocidade da correnteza, no caso do rio Amazonas. Geralmente dura meia hora num espaço que depende da velocidade da água ou se a tartaruga sobe ou desce o rio”, expõe Kati.
Tudo isso, segundo o pescador, é feito com o desenvolvimento das sensibilidades do corpo. “É necessário sentir a força, a direção e a velocidade do vento na pele e observar o movimento das árvores e da água”, revelou. A observação atenta desses fatores, determinantes para uma boa pontaria, depende da imersão do pescador no própria ambiente, ou mais precisamente na natureza.
Pode-se afirmar que, nesse contexto, seres humanos e natureza estão entrelaçados em desenvolvimento e movimentos. O flechador, ao aguçar suas habilidades e sensibilidades, consegue fazer uma leitura do ambiente em sua totalidade, na qual ele é parte e todo do mesmo processo de sabedoria empírica e intuitiva.
Kati esclarece que não tem a pesca da tartaruga em sua rotina. Não somente porque a pesca de quelônios está proibida há várias décadas, mas, principalmente, porque esses animais hoje são raros no rio Amazonas. “Foi-se o tempo das tartarugas. Hoje elas aparecem eventualmente”, disse Kati.
A esse respeito, os registros históricos dão conta de que entre 1700 e 1800 os colonizadores capturaram uma quantidade esbanjadora de tartarugas e recolheram milhões de seus ovos com finalidade comestível e industrial. O reflexo dessa pesca predatória se reflete até aos dias de hoje.