Wilson Nogueira [texto e fotos]
“O QUE É CERTO É QUE, COMUMENTE, ATRÁS DOS VENCEDORES CHEGAM OS LADRÕES”. (VICTOR HUGO)
Os livros nos apresentam portas e janelas como opções de entradas. É relativamente tranquilo atravessá-las. Mas em uma ou em outra, uma leitura edificante sempre nos leva a infinitos labirintos, nos quais devemos nos perder. Essa perdição nos leva a tatear melhores lugares nunca vistos, porque a experiência de cada leitura, mesmo as refeitas, sempre será única.
Quando li Os miseráveis (Cosac Naify, 2002), de Victor Hugo (1802-1885), no começo deste século, vi-me assim: diante de inúmeras entradas. Ao mergulhar nas páginas, fui construindo o meu mundo naquele universo que, inicialmente, se projetara uma viagem à uma Europa miserável encarnada na personagem Cossete, para, em seguida, imergir na miséria humana profunda.
Os anos se passaram, mas um episódio desse romance permanece em minha inquietude o tempo todo: é aquela em que Thénardier, o oprimido opressor de Cossete, se ocupa de roubar pertences dos soldados do derrotado Exército de Napoleão Bonaparte, na batalha de Waterloo, em 18 de junho de 1815.
Recentemente, li Musashi (Estação Liberdade, 2017), de Eiji Yoshikawa (1892-1962), clássico da literatura japonesa que romantiza a trajetória do famoso samurai Mushasi, que teria vivido entre 1564 e 1645. Logo no começo, Takezo, que depois se tornará Myiamoto Musashi, e seu amigo Matahachi, emergem como sobreviventes derrotados da batalha de Sekigahara, em 1600.
Caminhando sobre os cadáveres ainda com sangue fresco, eles se deparam, no cair da noite, com a sombra de uma jovem mulher cujos movimentos saltitantes e apressados são denunciados por um guizo atrelado ao seu quimono. Quem é este ser e o que faz nesse cenário horrendo e estúpido? Tratava-se de Akimi, filha de criação de Okoo, viúva de um samurai assassinado por um samurai bandoleiro.
Musashi e Matahachi se recuperam dos ferimentos na casa de Okoo e Akimi e, a partir de então, cada um segue o seu caminho. Akimi é uma ladra de restos de guerra e age assim para pagar a vaidade pessoal da madrasta, cuja vida é pautada no dar-se bem na vida a qualquer custo.
Vitor Hugo e Eiji Yoshikawa tocam nas entranhas das vicissitudes humana; ou do inumano, essa inacabada condição do ser humano. É como se eles dissessem: leitores, o ser humano também é isso e muito mais!
Evidentemente que esses eventos são minúsculas partes de dois clássicos da literatura mundial. Ambos, nos seus contextos, retratam os humanos no limite moral e ético da sua existência: a guerra, a violência explicita na sua tenebrosa crueza, se manifesta como resolução do problema pelo extermínio do outro.
Então, a leitura – nos dois casos inspiradas na realidade do Japão medieval e da Europa em transição para a modernidade – é, no mínimo, perturbadora, porque afeta o leitor de maneira indelével. É, necessariamente, um caminho sem volta na direção da problematização do eu, que, no fundo, também é o outro. Vista assim, a guerra nada mais é do que autoextermínio.
Não há como ser o mesmo após essa imersão no mundo onde ficção e realidade são faces da mesma moeda, e tempo e espaço apenas artifícios para destacar a duração e a dimensão humana. Haverá nessas trilhas labirínticas algum momento para uma reflexão para aquém e para além do eu mesmo, ou o encontro do que fui, do que sou e do que virei a ser nesta dança cósmica que nos envolve.
O fato é que a existência humana transcorre em sobressaltos, entre os quais, o causado pelo fantasma da guerra animado pela arrogância, pela ganância, pelo ódio e pela intolerância de todas matizes. Não é difícil constatar que a humanidade não caminha sempre para frente. Ou como me disse certa vez o saudoso professor Otavio Ianni: “A sociedade que combate a guerra é a mesma que a estimula”. A hipocrisia se sobressai no cotidiano e, assim, varre a cara de todos nós.
No conjunto, o que os dois autores propõem, por meio de situações históricas aparentemente tão distantes, é uma reflexão sobre os ideais da condição humana, com enfoque nas possibilidades de superação das suas incongruências. Como conquistar a justiça, a moral e a ética inabaláveis, as virtudes que elevam o ser humano à harmonia consigo e com o cosmo?
Essas questões nos atormentam tanto porque o esforço para respondê-las inclui leitura inquietante – principalmente leitura do mundo –, na qual as saídas dependem do amadurecimento moral, ético e espiritual de cada uma de nós, indivíduos e sociedade. E essa elevação não pode desconsiderar os dramas da estupidez enraizada na regressão, a exemplo do que representa a guerra real ou metafórica e a necessidade enfrentá-la com sabedoria e conhecimento.
Trechos
Os miseráveis (p. 282-283, vol. 1)
“Pela meia-noite, um homem rondava, ou antes, arrastava-se para o lado da estrada de Ohien. Era, segundo todas as aparências, um dos que acabamos de caracterizar, nem inglês, nem francês, nem camponês, nem soldado, menos homem que hiena, atraído pelo cheiro dos mortos, tendo como vitória o roubo, vindo ao Waterloo para saquear.
Estava vestido com uma blusa que lhe servia quase de capote. Era inquieto e audacioso, avançando sempre, mas sempre olhando para trás. Quem era esse homem? A noite provavelmente conhecia-o mais que o dia.
Não levava saco algum, mas evidentemente, seu casaco tinha grandes bolsos. De vez em quando parava, examinava o terreno ao seu redor, como para ver se estava ou não sendo observado, inclinava-se apressadamente, revolvia no chão qualquer coisa imóvel ou silenciosa, depois levantava e se esquivava.
Seu modo de se arrastar, suas atitudes; seus gestos rápidos e misteriosos faziam-no semelhantes a essas larvas crepusculares que povoam as ruinas e que as antigas lendas normandas chamam de alleurs.
[…] O vagabundo noturno, que acabamos de mostrar ao leitor andava por esses lados. Investigava aquele enorme sepulcro, sempre atento, passando em revista os cadáveres. Caminhava com os pés mergulhados em sangue. De repete, parou. Alguns passos a sua frente, no meio da estrada, no ponto em que os cadáveres eram menos numerosos, debaixo daquele amontoado de homens e cavalos, saía uma mão aberta, iluminada pela luz do luar. Essa mão tinha num dos dedos algo brilhante; era um anel de ouro. O homem curvou-se, permaneceu assim por algum tempo e, quando se levantou, o anel já havia desaparecido,
Musashi (p. 32, vol. 1).
“Na verdade, no decorrer do longo período de guerra, o bandoleirismo transforma-se em única opção de trabalho para os rounin, samurais errantes sem emprego ou suserano, indolentes e destemidos por natureza. Era uma realidade aceita pelo povo.
Os senhores feudais, por seu lado, deles se aproveitavam durante as guerras, contratando-os para incendiar campos inimigos, espalhar boatos desorientadores ou roubar os cavalos dos adversários.
Casa não fossem procurados para esses serviços, restavam ainda aos bandoleiros diversas outras opções: saquear cadáveres, assaltar sobreviventes, reclamar o prêmio pela cabeça de um guerreiro famoso cujo cadáver encontrassem abandonado num campo de batalha, cada guerra proporcionando-lhes meios para viver ociosamente por quase um ano.
Até mesmo a pacata população de lavrados e lenhadores, embora impedida de trabalhar a terra quando a guerra eclodia nas imediações de seus povoados, conhecia o gosto do lucro fácil proveniente da exploração das sobras de guerra”.