*Wilson Nogueira
No meado da década de 1970, estive no rio Mariacuã, na fronteira do Amazonas com o Pará, na companhia de meu pai, Adolfo Farias Nogueira (já falecido), que era motorista fluvial de uma empresa exploradora de pau-rosa, árvore amazônica cuja essência, o linalol, é usada na composição de perfumes.
Próximo à cabeceira desse rio avistamos tapiris de índios que ali deveriam permanecer por algumas semanas, para pescar e caçar. Os mateiros de pau-rosa, homens que identificavam os filões dessa árvore, diziam que sempre encontravam com grupos indígenas ao longo desse rio.
Espantava-me com aquilo tudo. Não pelo fato de estar na floresta, mas porque me sentia muito distante dos lugares que costumava a andar. Cheguei a imaginar que aquele rio e aquela floresta jamais seriam ocupados pela dita civilização .
Minha convicção aumentou quando a equipe de roladores (duplas de trabalhadores que manipulam as serras que transformam árvores em toras) constatou que meu pai havia sido enganado por mateiros matreiros.
Em vez da árvore do linalol, eles encontraram filões de louro-rosa, uma espécie de falso pau-rosa.
O pau-rosa já rareava nessa região. Menos um motivo econômico para o avanço de frentes extrativistas, achava eu.
Na mesma viagem, conheci, na cantina de aviamento do patrão do meu pai, um senhor que se dava a conhecer por Zé Gateiro. Um sujeito de voz mansa, ar introspectivo, que se punha a mamar um cigarro de tabaco moído enquanto conversava.
Ouvi, estupefato, as suas histórias. Ele contava que havia chegado às matas do Amazonas ainda bem jovem, procedente do Estado do Maranhão, em expedições de “gateiros”, como eram chamados os grupos de matadores de felinos que se embrenhavam nos sertões a serviço dos comerciantes de peles de animais silvestres.
Zé Gateiro, enquanto falava e gesticulava, apertava o cigarro de tabaco moído entre os beiços, e descansava a sua velha garrucha entre as pernas. “Nessa região havia mais onças e maracajás que formigas de fogo”, dizia.
Os gateiros, segundo ele, passavam anos a fio no interior da floresta. O abastecimento de alimentos e recolhimento das peles eram feitos por helicópteros. A comunicação entre os caçadores e seus financiadores se dava por meio de radiofonia.
Vez por outra eram levados às cidades para gastar, nos cabarés, o dinheiro ganho com a matança desses animais. A farra se estendia até que seus bolsos esvaziassem e novamente se endividassem com os comerciantes de peles.
Zé Gateiro dizia que só parou quando não existia mais onça nem maracajás nos lugares por onde ele e sua turma haviam caçado. A proibição da matança e comercialização da pele de animais silvestres veio depois, em 1967.
Para capturar onças e maracajás vivos, os gateiros os atraiam para arapucas de madeiras com outras caças: macacos, cutias, aves etc. “O macaco era morto e arrastado até a armadilha, onde era pendurado. O gato vinha atrás do piché (odor) dele e caía no cercado de madeira. Daí era só dar um tiro com palaqueta (bala) na testa dela, para não estragar e desvalorizar o couro”, explicava Zé Gato, com certo orgulho.
Nas caminhadas pela mata ainda encontrávamos essas armadilhas, às vezes, em bom estado de conservação, porque eram feitas de madeira forte, para aguentar a reação dos felinos. Junto às armadilhas estavam as ossadas das iscas – as preferencias eram mesmo as de macacos.
A viagem ao Mariacuã, por essas e outras lembranças, sempre me acompanharam, embora reconheça que elas podem ter se dispersado bastante, porém amadurecidas em criticidade.
Sua duração talvez tenha se alimentado da ideia de que aquela região jamais seria alcançada nem dominada pela depredação do extrativismo capitalista de terra arrasada. Pois foi.
Soube, por meio de um amigo da etnia Saterê-Maué, que a extração ilegal de madeireira e a plantação de maconha proliferam nas terras altas e nas margens do rio Mariacuã. “A máfia da madeira e os traficantes tomaram conta daquela região”, disse-me o amigo.
As madeireiras se instalam, ilegalmente, no meio da floresta e agem com tratores e serras poderosos. Os moradores tradicionais do Mariacuã e do Mamuru, através dos quais escoam a produção ilícita, são cooptados com trabalho em condições precárias e intimidadas a não denunciar os invasores às autoridades.
E o amigo Sateré-Mawé confirmou-me uma suspeita: “Os índios que vocês viram por lá eram nossos parentes. Aquilo tudo é terra dos nossos ancestrais”.
É assim mesmo que o capitalismo avança sobre novas matérias-primas e novos mercados. O primeiro passo é a liquidação da população nativa, pela matança e pelo terror, para afastar quaisquer empecilhos aos seus empreendimentos.
Vejamos: os Saterê-Maué, conforme os registros de religiosos, viajantes e estudiosos da Amazônia, viviam em extensa área entre os rios Tapajós e Madeira. O avanço das frentes colonizadoras os espremeu nos rios Andirá e Marau, onde hoje passam privações em razão da escassez de peixes e caças.
Os gateiros e os exploradores de pau-rosa eram apenas os ponta-de-lança do empreendimento da terra arrasada. O contrabando de madeira, a plantação de maconha e a garimpagem ilegal devem preceder os empreendimentos legalizados que virão, como as grandes mineradoras, as madeireiras certificadas, os laboratórios de medicamentos com selo verde e as multis do tipo” sustentáveis, para “salvar” florestas, rios, animais e os índios que restarem.
A matança e o confinamento dos índios, a destruição da floresta, dos rios e dos animais indicam que, nas rédeas do capitalismo, a tendência da Amazônia e das suas populações primordiais é virar cinzas.
“Por isso, defendo que as populações amazônicas, inclusive as que vivem nas cidades, refaçam suas alianças no modo de produzir, viver, conviver e compartilhar o planeta. As culturas da floresta ainda persistem para nos ensinar a arte do bem viver.
*O autor é jornalista e escritor
Ilustração: Alex Fideles