Quando olhamos em uma perspectiva colonial, dizemos que a Amazônia tem duas estações no ano: o verão e o inverno.
Na realidade, temos um único clima: um calor intenso que oscila entre ter ou não ter chuva por seis meses.
Quando olhamos em uma perspectiva amazônica, temos outras duas: vazante e enchente. Tais categorias contemplam um movimento fundamental dos rios para o bioma.
No ano passado, a essas categorias somou-se outra: a estação da fumaça.
Manaus e outras cidades do norte passaram de agosto a novembro respirando grandes porções de floresta queimada.
Durante quatro meses, oscilamos entre dias suportáveis e dias de fim do mundo.
Neste ano, ao adentrar agosto, vemos Manaus sob a “neblina” da fumaça novamente.
Quanto tempo suportaremos, com saúde, respirando floresta queimada quatro meses no ano?
Será assim até que restem árvores apenas nas terras indígenas e quilombolas, reservas e áreas de proteção ambiental?
Que tipo de ar respiraremos nesse cenário?
A fumaça que respiramos, raramente, sufoca outros além de nós, gente nortista.
Em 2019, a fumaça do sul do Amazonas chegou a São Paulo, anoitecendo o céu da grande metrópole em pleno dia.
Desde a última semana, levada por um corredor de vento, a nuvem de fumaça chegou a Florianópolis (SC), do outro lado de um país de dimensões continentais.
Segundo o doutor em química orgânica Sidney Azevedo, do Laboratório de Síntese e Caracterização de Nanomateriais do Ifam (Instituto Federal do Amazonas), “a fumaça é composta por uma mistura de gases e partículas sólidas suspensas no ar. As partículas sólidas resultam da combustão incompleta de materiais e podem incluir fuligem, cinzas e outros resíduos. Portanto, ela é uma combinação de gases e pequenas partículas sólidas”.
A fumaça é prejudicial à saúde, sobretudo, do trato respiratório.
Mas, pode causar dor de cabeça, irritação dos olhos, adoecimentos diversos ou agravar condições crônicas, como a asma.
Ainda não sabemos a quais problemas estamos vulneráveis a longo prazo por estar expostos a fumaça por tanto tempo.
Contudo, sabemos que idosos e crianças pequenas são os mais vulneráveis.
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As narrativas de origem do mundo
O cerco da destruição ambiental que experimentamos nos últimos anos é vivenciado por povos indígenas desde 1500.
Estima-se que 3,5 milhões de indígenas viviam na Pindorama (terra das palmeiras), nome tupi da área que passou a ser chamada de Brasil.
Hoje são pouco mais de 1,6 milhão.
É possível identificar o impacto desse contato violento e destrutivo por meio de suas narrativas de origem.
Ao contrário do que muitos pensam, elas não são narrativas estáticas de um passado. Falam de um tempo mítico, um tempo suspenso de tempo.
Nesse tempo sem tempo, as concepções de criação e funcionamento do mundo de muitos povos são reelaboradas segundo os acontecimentos históricos.
Mesmo o livro sagrado dos cristãos, a Bíblia, por exemplo, atualiza suas interpretações sobre como ver e viver no mundo de acordo com as transformações sociais ao longo do tempo. Só assim ela faz sentido para o mundo atual.
Sem perder o que é fundamental para os cristãos, que são os ensinamentos de Jesus Cristo, ela não versa apenas sobre esse passado, mas orienta a viver no presente.
As narrativas indígenas, grosso modo, também operam assim. Em transmissão oral, elas contam sobre a origem do mundo, seu funcionamento e a origem daquela humanidade específica.
Falam ainda sobre a origem das doenças e como curá-las.
Uma importante atualização feita pelos povos indígenas diz respeito ao contato e à origem do homem branco.
Para alguns povos, o homem branco surge de formas pouco nobres, como do vômito ou das fezes de algum animal mítico.
Para outros, sequer é considerado humano, sendo como um fantasma, um espírito temperamental ou um ser sem espírito.
Afinal, o contato foi violento, desumano e mortífero. Inclusive porque várias doenças chegaram aos indígenas por meio do contato com eles, especialmente as respiratórias e as febres letais.
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A fumaça do metal
Segundo nos conta Bruce Albert, antropólogo francês que atua junto aos Ianomâmis há quase 40 anos, o mito da origem das doenças foi se transformando em consonância com os efeitos do contato desse povo com os “napës” (de fora, branco ou estrangeiro).
O contato dos ianomâmis com os brancos é intensificado recentemente, a partir de seu encontro/confronto com a construção da estrada perimetral norte, na década de 70, seguido da corrida do ouro na de 80.
Antes disso, as narrativas antigas apontam a fumaça como origem das doenças, as “xawaras”.
Como o aumento das doenças respiratórias se intensificou após o contato, o conceito de xawara foi ampliado à fumaça resultante do processo da fabricação do metal pelos napës.
Por exemplo, os terçados que adquirem após o contato, possuem um cheiro percebido como rastro da fumaça de sua fabricação industrial.
Por isso, o metal dos objetos dos napës traz consigo uma doença em potencial e, portanto, é responsabilizado como causa das febres e gripes que acometem os ianomâmis a partir de então.
Ao ter contato com o discurso ambientalista na virada das décadas de 80 para 90, Albert nota que Davi Kopenawa passa a traduzir a xawara, a fumaça das doenças, também como poluição. O ar poluído vai de encontro com a ideia de que os metais carregam doenças.
Na narrativa de origem ianomâmi, Omama, o criador, deixou sobre a terra apenas o que se come. O ouro e outros metais são um anti-alimento, pois não são alimentos.
Além disso, Omama deixou no centro da terra os metais que sustentam a terra-floresta.
Kopenawa explica que os metais retirados pelos napës são apenas resquícios desses pilares.
Assim, quando os napës queimam os metais em suas fábricas, o vento leva a fumaça das doenças para o céu e a xawara acomete todos os povos, inclusive os napës.
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A crítica ianomâmi
Na visão ianomâmi, a terra é um céu que caiu na origem do mundo, tornando-se a grande floresta “urihi-pata”, termo que Kopenawa traduz como o mundo inteiro.
Pensando o planeta como uma grande floresta, podemos dimensionar a compreensão ianomâmi de que os napës são ignorantes da vida, pensam que a floresta está lá à toa e, por isso, a destroem para retirar o metal das doenças.
Quando olhamos as imagens aéreas por satélite, as cidades são como feridas no mundo.
Havia floresta onde hoje estão as cidades e os pastos. Não há como negar que os napës comem floresta.
A vista do céu nos permite ver uma das últimas grandes florestas do mundo, a Amazônia, queimando.
A vista do chão permite ver a fumaça xawara no céu.
Ao respirar, podemos sentir ainda um rastro do cheiro do mato.
Os chamados “rios voadores”, corredores de vento que levam umidade da Amazônia para o centro-oeste do país, já estão sendo chamados pelos cientistas de “rios de fumaça”.
Antes, eles levavam as chuvas para essa região; hoje levam a fumaça das doenças respiratórias.
Não é de hoje que Davi Kopenawa nos avisa que a xawara está no céu, fruto da paixão cega dos napës por suas coisas.
E que o céu pode cair outra vez.
Muitos deles já caíram para muitos povos indígenas desde 1500. Os guaranis kaiowás, no centro-sul da Pindorama, foram sendo expulsos de seu território com a política de terras e proteção de fronteiras no centro-oeste desde a década de 20.
Na Venezuela, o rio Mañamo, dos waraos, foi invadido pelo mar do Caribe após uma obra que o represou.
Em nome do desenvolvimento econômico daquela região, em 1960, o seu principal rio ficou salgado. Hoje, uma porção deles vive no Brasil.
Os krenaks, no sudeste, perderam o seu doce rio com o crime ambiental de Brumadinho (MG) em 2019.
São muitos os exemplos de céus caídos.
Se não conseguirmos conter o estabelecimento definitivo da estação das queimadas, o céu das cidades do norte também cairá.
Não por acaso, nelas moram, predominantemente, a gente que descende de outros muitos povos indígenas cujo céu caiu em encontros anteriores com os napës.
A ferida na terra-floresta iniciada por eles, as cidades, vão crescendo à medida que diminuem nossas memórias de ensinamentos preciosos sobre como olhar para a floresta.
O céu em que vivemos hoje foi forjado na fumaça dos metais das coisas pelas quais nós também somos apaixonados agora.
Não sabemos quanto tempo os pilares que o sustentam conseguirão suportar o peso da doença trazida pela fumaça da floresta.
*A autora é antropóloga.
Foto: BNC Amazonas