Por Wilson Nogueira *
A notícia da candidatura e da eleição da vereadora de Manacapuru (AM) Francisca Ferreira da Silva (PDT), de 32 anos, a Coroca, foi recebida pelos internautas com comentários preconceituosos de todos os matizes.
A maioria deles se escondeu atrás de frases ou piadinhas engraçadinhas , comportamento típico de falsos moralistas. Nas duas ocasiões, os posts deste BNC sobre a Coroca viralizaram nas redes sociais digitais, porém poucos foram os que a trataram com respeito e dignidade.
Coroca passa por um escracho moral porque assume que é prostituta com atuação na zona portuária da cidade onde mora.
Assim ela é o que é: mulher, cabocla, pobre e prostituta. No jeito de viver, ela guarda semelhanças com a personagem Bola de Sebo do conto homônimo de Guy de Maupassant, inspiração de Chico Buarque de Holanda para compor “Geni e o Zepelim” , a versão musical da sátira de Maupassant ao falso moralismo francês do século 19.
Contextualizado na guerra franco-prussiana (1870-1871), o conto se desenvolve na viagem de um grupo de moradores de Ruã – entre os quais gente do clero, da nobreza e das classes pobres, como a prostituta Bola de Sebo – para Havre.
Os viajantes param em Tótes para fugir do mau tempo e, na hora de partir, surpreendem-se com a inusitada exigência do oficial prussiano que controla aquela região: a carruagem só seguirá se Bola de Sebo for para a cama com ele.
A prostituta, porém, se sentiu ofendida em sua dignidade: jamais iria para a cama com um homem que fazia parte do povo que invadiu a sua pátria.
Os cavalheiros e as damas da alta sociedade francesa, ali representados, diferentemente da moral e dos valores que dizem defender e praticar, não se incomodam em atender ao desejo do oficial da ocupação e tecem os argumentos mais ardilosos para demover Bola de Sebo da sua ética. Justo ela que parecia ser a mais fácil e mais indigna de todas.
Assim como Bola de Sebo, Coroca possui a sinceridade de assumir, sem dissimulação, que usa o seu corpo para sobreviver em mundo desigual e hipócrita. E, por meio de atos e gestos ousados, ela veio, ao longo da sua vida, conquistando a admiração e a empatia de muita gente igualmente ousada.
Não é à toa que ela ganhou o apelido amazônico da ave anum. Nada a ver com significado de velha rabugenta da língua vernacular dominante.
No imaginário caboclo-indígena, a coroca é amiga de outras aves que se alimentam de pequenos insetos. Bandos de corocas costumam acompanhar as manadas bovinas – juntamente com outros pássaros – entre eles, a piaçoca, o teotéo e o maçarico, para se alimentar de mosquitos, carrapatos e vermes que se alojam no couro desses animais. É vista, portanto, como amiga da boiada, por acompanhá-la e aliviá-la dos incômodos bichinhos.
O cantor e compositor amazonense Chico da Silva eternizou em toada de boi-bumbá esse comportamento da coroca.
Poucos em Manacapuru desconhecem que Francisca Ferreira da Silva é uma pessoa que zela pelas amizades, que se alastram do cais do porto à escola dos filhos.
E a sua popularidade se espalhou em razão da demonstração de amor e afeto aos amigos e amigas e, sobretudo, pela responsabilidade com o futuro dos filhos firmado na educação escolar.
Logo, por mais, paradoxal que possa parecer à moral classista e religiosa dominantes, ela é amiga e mãe exemplar na sua cidade. Os professores confirmam que Francisca é sempre presença certa nas reuniões de pais de alunos; que também deixa e pega dos filhos todos os dias na escola; que está sempre atenta à recomendação dos professores; que procura pagar suas contas em dia e por isso tem crédito na praça.
O internauta Ramon Nascimento fez este registro em internetês: “Sem contar que todos os professores dos filhos que ela tem, todos dizem que ela é uma boa mãe, leva e traz os seus filhos todos bem arrumados para a escola”.
Vivendo a vida como ela é, Francisca enfrenta as mazelas que lhe corroem o corpo e a alma com a firmeza dos pés que a levam ao bordel e à escola dos filhos.
Muitos dos votos que recebeu nas urnas são, certamente, das eleitoras e dos eleitores que acompanharam, ainda que de soslaio, a sua trajetória de vida decente; e entenderam que a prostituição não é uma maldição, tampouco um rio de prazeres, mas, salvo as raras exceções, mais uma das profissões marginalizadas no mundo insano e incerto das mercadorias humanas.
O internauta Ulisses Cortêz assim se referiu à vereadora eleita: “Parabéns. Prostituição não é prazer e sim um meio de sobrevivência”.
Cortez compõe o rol de pessoas que observa a sociedade a contrapelo. Mas, não é isso que pensa a imensa maioria que, por convicção, má-fé ou pura ignorância, faz o jogo da hipocrisia ao semear o preconceito em suas inúmeras vertentes.
É essa gente que incita a multidão – agora midiática – a jogar pedra na Geni, porque “ela é boa pra cuspir…”. É essa gente que se recusa a compartilhar o mundo como ele é: a nave-mãe da diversidade.
* O autor é doutor em Sociedade e Cultura da Amazônia, pós-doutorando em Comunicação Social, sociólogo e jornalista
Arte: Gusmão