O vaivém da rua do Fuxico acontece no silêncio  

A intensa disputa por clientes e a ausência de regulamentação adequada tornam o local alvo de críticas e suspeitas.

Wilson Nogueira, da Redação do BNC Amazonas

Publicado em: 21/07/2024 às 10:37 | Atualizado em: 21/07/2024 às 10:37

O vaivém de veículos motorizados, carros de cargas puxados por estivadores e lotes de mercadorias espalhados nas calçadas e nas laterais da rua compõem o cenário de “caos organizado” da área mais movimentada da zona leste de Manaus: a rua do Fuxico.

Trata-se da via cujo nome oficial é avenida Brigadeiro Hilário Gurjão, localizada entre os bairros Amazonino Mendes, o Mutirão, e o Jorge Teixeira, na divisa das zonas leste e norte, as mais populosas da capital.

O centro atacadista a céu aberto tem fama de vender barato desde que se consolidou, por volta do ano 2000. Porém, ainda hoje é alvo de suspeita de praticar concorrência desleal. 

Nessa área está concentrada a maioria dos “atacarejos” de grãos, bebidas, frutas, legumes, medicamentos, material de construção e variedades fora do centro antigo da cidade. O local recebe clientes de toda Manaus e das cidades metropolitanas.

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Fuxicada por clientes

A disputa por clientes é acirrada: vendedores, cartazes, placas e serviços de som anunciam as promoções do dia, com direito a pechincha, e disputam a atenção dos clientes, em sua maioria varejistas.     

Entremeados às distribuidoras estão restaurantes, bancas de comida rápida, brechós, camelôs e prestadores de serviços pessoais.

Assim, com tanta gente em um só lugar, não é de se estranhar o porquê de a rua que homenageia Hilário Gurjão (1820-1869), um militar paraense, tenha se tornado a rua do Fuxico. 

Mas, quando o tema é informações às mídias, transforma-se em “rua do silêncio”. 

“Aqui o fuxico corre solto entre os comerciantes na briga por clientes”, afirmou o ajudante avulso de caminhão Rogério dos Santos.

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Estação do fuxico 

Na avenida general Rodrigo Otávio, perto do acesso a essa área comercial, existe uma estação de ônibus da prefeitura que também se chama fuxico.

Comerciantes e trabalhadores, porém, são unânimes em tentar explicar que o fuxico praticado ali não tem nada a ver com fofoca, comentário maldoso ou mexerico, como denominam os dicionários. 

“O fuxico aqui está ligado à variedade de preços, à pechincha. Como a concorrência é grande, a ‘fuxicada das promoções’ corre solta entre clientes e comerciantes”, interpreta Santos, que trabalha há quinze anos na área, treze deles de carteira assinada.

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Expansão de ‘invasões’

O bairro Mutirão faz parte das invasões que ocorreram a partir da década de 1980, em torno do bairro São José Operário, planejado pela prefeitura para abrigar operários do polo industrial da Zona Franca de Manaus (ZFM), a maioria vinda do interior do estado.

Juscelino Ramos*, um morador antigo, disse que o primeiro atacadista da área foi um comerciante conhecido por Anílson, que morreu vítima de assassinato. 

“A distribuidora dele vendia cervejas e água mineral”.

Ramos afirmou ainda que, naquela época, o bairro estava surgindo: havia poucas casas e a área era tomada por mato e possuía igarapés e fontes de água cristalina.

Terrenos a preço de banana

A partir de 1990, as moradias conquistadas na invasão começaram a ser vendidas a comerciantes atraídos pela localização da rua que interliga dois bairros da segunda zona mais populosa de Manaus, com aproximadamente 500 mil habitantes. 

Hoje existem, ali, em torno de quarenta distribuidoras, a maior parte de grãos e bebidas, mais o comercio de varejo. 

O maior fluxo de pessoas, veículos e mercadorias ocupa apenas três quarteirões da rua do Fuxico, contudo, como identidade comercial, se expande por toda a Brigadeiro Hilário Gurjão e ruas e travessas do seu entorno.

Ramos explica que o comércio da rua do Fuxico cresceu rápido e de forma desordenada. Os igarapés e fontes foram todos soterrados.

“Existem prédios que alagam quando chove porque estão sobre igarapés e bueiros”.

Ele disse ainda que os primeiros comerciantes compraram terrenos dos “invasores” a preço de banana, por mais ou menos R$ 5 mil cada um, ou os invadiram. 

E invasão não parou na zona leste. “Hoje conheço ao menos cinco, todas sob lideranças duvidosas”. 

Concorrência desleal

Roberto Carlos, nascido nas proximidades da famosa rua, disse que a partir da metade de 2000 a área passou a ser alvo da Secretaria de Estado da Fazenda (Sefaz), em razão de denúncias de concorrência desleal feita por comerciantes localizados no entorno da Manaus Moderna, no centro histórico da cidade. 

E não foram poucos os que tiveram que prestar contas com os fiscos estadual, municipal e federal, e até com a polícia. 

“Hoje ainda existe gente irregular por aqui, mas a grande maioria trabalha direitinho”.

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Exploração de migrantes

Outra suspeita que pesa sobre os comerciantes da rua do Fuxico é a da utilização da mão de obra de migrantes, principalmente de venezuelanos, sem pagar seus direitos sociais e trabalhistas garantidos pela legislação brasileira.

Atualmente, a maioria dos trabalhadores que carrega e descarrega caminhões é de origem do país vizinho, afetado por crise econômica e política agudizada a partir de 2010. 

Os migrantes recebem com biscateiros, por isso, realizam serviços avulsos mediante preço estipulado pelo contratante. O trabalhador que faz a jornada de um dia, de modo ininterrupto, não ganha até R$ 80.

Antes, essa mão de obra era contratada de carteira assinada entre brasileiros. 

“Os venezuelanos desconhecem os direitos que têm no Brasil, estão em situação vulnerável e por isso topam tudo para sobreviver”, denunciou Ramon Diaz*, venezuelano refugiado em Manaus. 

Há comerciantes que demitem todos os funcionários brasileiros e só contrataram migrantes, para não pagar hora extra, vale-refeição, vale-transporte, INSS, Pis/Pasep, 13º salário e demais direitos trabalhistas.

“É por isso que a rua do Fuxico é malfalada, mas não é por conta de fofoca, é devido aos maus comerciantes”, afirmou Diaz.

Não é à toa que nem comerciantes nem trabalhadores da área gostam de falar para a imprensa. E quando falam, não se deixam fotografar nem autorizam a publicação dos seus nomes.

*Nota: os nomes com asteriscos são de pessoas que preferem o anonimato a perder o emprego ou ficar malvistas entre os comerciantes da área.  

Assim, a rua do Fuxico também poderia se chamar a rua do Silêncio.

Fotos: Wilson Nogueira/especial para o BNC Amazonas