Um dos maiores especialista do país em Direito Constitucional, o professor da Universidade de Brasília (UnB), Marcelo Neves, diz que a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes de prosseguir as reuniões da comissão de conciliação sobre o marco temporal, sem a representação indígena, é “inconstitucional e ilegal”.
No último encontro, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) retirou da mesa de conciliação os seus seis representantes por entender que a lei do marco temporal, ainda em vigor, é uma situação de desigualdade negocial.
A Apib pediu ao ministro a suspensão da lei, aprovada no Congresso logo depois que o STF julgou a tese inconstitucional, mas não foi atendida. Mendes afirmou que a comissão vai prosseguir “com quem estiver à mesa”.
O jurista diz que a comissão está inviabilizada sem a participação da representação indígena. “Me parece que essa conciliação se torna totalmente inconstitucional e ilegal, de forma definitiva”, avalia.
“Acho que é totalmente absurda a continuidade dessa comissão, sem a disposição dos povos indígenas de conciliar nos termos estabelecidos pelo ministro Gilmar Mendes, à luz de uma lei que contraria o direito fundamental dos indígenas às suas terras”, prossegue.
Neves ainda acredita que as normas de funcionamento da mediação vão contra a própria ideia de conciliação.
“Nesse contexto da linguagem do voto da maioria e de outras nuances que se apresentam dentro da comissão, ela não tem sequer o caráter conciliatório”, lembra.
Neves também avaliou que a substituição da Apib nas atividades pela Funai (Fundação dos Povos Indígenas), MPI (Ministério dos Povos Indígenas) ou outra organização indígena seria uma afronta aos direitos dos povos originários.
“Um órgão oficial não pode substituir uma entidade representativa dos interesses dos povos indígenas, quer dizer, não tem nenhum sentido essa substituição. A escolha de outra entidade [indígena] é complicada, porque o próprio Supremo reconhece a Apib como instituição que é representativa dos povos indígenas”, diz o jurista em entrevista ao jornalista Oswaldo Braga de Souza, do Instituto Socioambiental (ISA).
“Me parece que esse é um casuísmo, evidentemente para enfraquecer a demanda dos povos indígenas pela afirmação dos seus direitos”, entende.
O especialista ainda criticou o critério da decisão por maioria adotado pelo ministro na comissão.
“Me parece esdrúxulo essa solução de uma decisão por maioria. Porque uma decisão por maioria implica que o processo não é conciliatório. É um processo decisório de caráter político, de certa maneira, na medida em que vai se discutir qual a maioria prevalece”, argumenta.
Direitos
Outro especialista na área, também ouvido pelo ISA, professor Daniel Sarmento, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), entende que processos de mediação são instrumentos positivos e bem-vindos para dirimir conflitos judiciais, mas não podem ser aplicados indiscriminadamente.
“Pela própria Constituição, os direitos territoriais indígenas são indisponíveis e não admitem nenhum tipo de conciliação, renúncia, nada desse gênero”, considera.
Ele diz que não se pode conciliar por uma questão até de definição, sem que o titular do direito aceite o procedimento de conciliação. “Não há base legal para uma conciliação contra a vontade do titular do direito, o que é inadmissível em qualquer conciliação”, lembra.
O professor Oscar Vilhena, da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP), defende que o STF declare a Lei 14.701, que restabeleceu a tese do marco temporal, inconstitucional. “As críticas do movimento indígena são absolutamente pertinentes, a começar pela questão da suspensão da lei que reintroduziu o marco temporal. Se essa tese é inconstitucional, como pode sobreviver uma lei que o restabelece? Não faz sentido”, diz o professor de Direito Constitucional.
Entenda o caso
A tese do marco temporal diz que os povos indígenas só possuem direito aos seus territórios caso estivessem em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
O STF julgou inconstitucional essa tese e considerou que os indígenas possuem o direito originário constitucional sobre suas terras ancestrais.
Meses depois, o Congresso aprovou projeto que resultou na Lei 14.701/2023, resgatando o dispositivo da tese do marco temporal.
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A reunião de conciliação foi convocada pelo ministro Gilmar Mendes que é o relator das ações impetradas pelos partidos PP, PL e Republicanos pedindo ao STF que confirme a constitucionalidade da lei.
Já a Federação Brasil da Esperança (PT, PCdoB e PV), PDT e Apib buscam em outra ação derrubar o dispositivo que criou a o marco temporal.
Foto: Bruno Peres/Agência Brasil