O MPF (Ministério Público Federal) apertou o cerco contra a Funai e deu um ultimato ao órgão federal para interditar áreas de indígenas isolados no Amazonas.
Em uma delas, na região do igarapé Caribi, nos municípios de Silves e Itapiranga, no Amazonas, onde ocorre exploração de gás e petróleo e um investimento de R$ 6 bilhões, a Funai, em uma expedição, não constatou a presença de povos isolados.
Como “prova”, o órgão tem em mãos apenas relatos e fotografia apresentados por uma ong. Além de um artefato atribuído aos indígenas isolados.
Dessa forma, três procuradores da República – Fernando Merloto Soave, Eduardo Jesus Sanches e Daniel Luís Dalberto – assinaram, em 14 de novembro, o ofício Recomendação Legal nº 03/2024, expedido no âmbito do Inquérito Civil n° 1.13.000.000887/2021-65 e do Procedimento Administrativo n° 1.00.000.010448/2023-81.
Nele, os membros do MPF no Amazonas recomendam à presidente da Funai, Joênia Wapichana (na foto, com o procurador da República Fernando Merloto ) e à diretora de proteção territorial do órgão, Maria Janete Albuquerque de Carvalho, que façam imediata interdição em duas áreas com a presença de indígenas isolados.
A primeira, na região do Mamoriá Grande, no município de Lábrea. Já, a segunda, no igarapé Caribi.
Tais interdições devem ocorrer por meio da portaria de Restrição de Uso, prevista no artigo 7°, do Decreto n° 1.775/96.
Isso porque, alega o MPF, dentre os instrumentos garantidores da proteção aos povos indígenas em isolamento, baseado nos princípios da prevenção e da precaução, encontram-se as portarias de restrição de uso. Elas limitam o ingresso de terceiros nas áreas interditadas e vedam a realização de atividades econômicas e/ou comerciais.
Cidades-fantasmas
Significa dizer que, em caso de edição e publicação da portaria de restrição de uso, pela Funai, ninguém poderá entrar ou permanecer no perímetro interditado. Ou seja, os empreendimentos e a exploração de gás e madeira deverão ser paralisados e toda a população local retirada.
Desse modo, a depender do perímetro estabelecido pela Funai, Silves (12.404 habitantes) e Itapiranga (17.149 habitantes) poderão virar cidades-fantasmas. Assim como as rodovias AM-330 e AM-363, que passam nos dois municípios, também dever serão interditadas.
Além disso, o abastecimento de energia elétrica de Roraima deverá ser severamente comprometido. Isso porque 70% da energia do estado, que não é interligado ao sistema integrado nacional, é gerado pela usina térmica Jaguatirica II com o gás natural da região de Silves. Com a interdição da exploração de gás, Roraima deve ficará às escuras.
“A presença de qualquer pessoa nas áreas onde vivem os povos isolados ocasiona graves ameaças à vida e à própria existência desses grupos, dadas suas vulnerabilidades frente a nossa sociedade, principalmente sob o aspecto epidemiológico (doenças), devendo incidir o princípio da precaução com a adoção da medida administrativa cautelar da restrição de uso”, diz o oficio-recomendação do MPF.
Portanto, diz a “recomendação”, a Funai deverá exercer o poder de polícia nas áreas reservadas e nas matérias atinentes à proteção dos indígenas, e disciplinar o ingresso e trânsito de terceiros em áreas em que se constate a presença de índios isolados, bem como tomar as providências necessárias à proteção aos índios, através do instrumento”.
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Prazo e ameaça
Os procuradores Fernando Merloto, Eduardo Sanches e Daniel Dalberto, em sua “recomendação”, deram prazo de dez dias para que a Funai informe ao MPF sobre seu acatamento, encaminhando esclarecimentos detalhados a respeito das providências adotadas.
Além disso, caso a “recomendação” não seja atendida, os dirigentes da Funai poderão ser responsabilizados por conduta de omissão, cabível de medidas judiciais.
“A presente recomendação tem por objetivo solucionar, de maneira rápida, dialógica, a questão posta, bem como conferir ciência inequívoca e constituir em mora (obrigação de cumprir) a Fundação Nacional dos Povos Indígenas para a adoção de medidas reputadas essenciais à proteção dos povos indígenas afetados”, diz ofício de recomendação.
Um lado
Os procuradores da República também pediram que as ongs CPT, Coiab, Apib, Apiam, Cimi e demais instituições que acompanham os temas, também fossem comunicados.
Por outro lado, as empresas Eneva e Mil Madeiras Preciosas, responsáveis pelos empreendimentos na região e também interessadas no assunto, não foram informadas da “recomendação” do MPF.
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Motivos
A recomendação-ultimato à Funai leva em consideração as manifestações e pedidos de atuação do MPF em relação à presença de indígenas isolados na região de Silves e Itapiranga, área do igarapé Caribi.
Essas manifestações foram do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e Comissão Pastoral da Terra (CPT), que integram a rede de ongs “resistência amazônica”, que é contrária à exploração de gás natural. Esta última ong é quem teria avistado os indígenas em Silves.
Além disso, também é considerado o ofício n. 765/2024/DPT/Funai, sobre exploração de petróleo e gás em Silves. No documento, o MPF foi informado sobre a “alta probabilidade” de presença de povos indígenas isolados na região do igarapé Caribi e afluentes.
Indígenas do Mamoriá
Na região do Mamoriá, no Amazonas, a própria Frente de Proteção Etnoambiental Madeira Purus, da Funai, constatou a presença de povos isolados em dois momentos distintos, tendo realizado expedição ao local em dezembro de 2023, diz o MPF.
Mas, foi em agosto de 2021, durante expedição liderada pela Funai, que a existência desse povo indígena isolado foi confirmada na região do Mamoriá Grande, no sudoeste do Amazonas.
Uma equipe de técnicos da Funai visitou a área entre agosto e outubro de 2021 e encontrou evidências conclusivas da presença dos isolados: abrigos de caça, cestos trançados, potes e arcos. Eles também ouviram membros do grupo conversando nas proximidades.
Em 2024, a Funai criou um grupo de trabalho para liderar estudos antropológicos na região, que têm como fim a demarcação do território.
Isolados em Silves
Atualmente, o principal argumento do MPF no Amazonas para pedir a interdição nos empreendimentos de exploração de gás e madeira em Silves e Itapiranga é a presença de indígenas isolados.
No ofício de recomendação à Funai, os procuradores justificam que há manifestações fundamentadas e pedidos de atuação do MPF, em relação à presença de indígenas isolados na região dos municípios de Silves e Itapiranga, área do igarapé Caribi, no Amazonas.
Essas manifestações (relatos e uma fotografia) foram feitas inclusive por quem diretamente os avistou, em reunião na 6ª Câmara do MPF, com a presença do Cimi e da CPT.
“Além dos relatos consistentes e da fotografia coletada pelos integrantes da CPT, as entrevistas com os comunitários da RDS (Uatumã) também apontarem para a presença de isolados e evidências que dão conta que, ao menos desde 1992, este povo isolado está presente nas margens do igarapé Caribi”, afirma o MPF.
Alta probabilidade
No entanto, a expedição que a Funai fez entre março e abril de 2024, não constatou a presença de povos isolados. Encontrou apenas um artefato atribuído aos indígenas.
Mesmo admitindo que não avistou indígenas isolados, na expedição, a Funai diz que os fatos e evidências, qualificados in loco, nas atividades de qualificação e expedição de localização, têm alta probabilidade de presença de povo indígena isolado na região do igarapé Caribi e afluentes.
“Ainda que não tenha sido possível confirmar de maneira inequívoca a presença de população indígena isolada na área, a possibilidade de confirmação é alta. Deste modo, são necessárias novas expedições de localização para qualificar a presença deste povo isolado na região, cabendo à Funai a premissa e obrigação de dar continuidade ao trabalho de qualificação e localização”, informou a Funai ao procurador Fernando Merloto.
Foto do suposto indígena isolado na região de Silves, tirada por um membro da CPT
Indícios de manipulação
Do mesmo modo, a fotografia, tirada por um membro da CPT, tem indício de adulteração, segundo perícia técnica realizada por Allan Reis.
Em seu laudo, o perito afirma:
“Sem desconsiderar qualquer avaliação adicional, que possa ser pertinente ao caso em questão, é possível afirmar que a imagem analisada não se mostra autêntica, apresentando indícios de manipulações que sugerem possíveis adulterações tais como: montagens, adições e supressões”.
Allan Almeida Reis é especialista em perícias criminais e ciências forenses. Além disso, ele é perito judicial do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM), desde 2012, do Tribunal Regional Federal, da 1ª Região (TRF-1), e presidente nacional da Comissão de Perícias forenses da OAB.
Intenção final
Por fim, os procuradores da República arrematam:
“A região (Silves e Itapiranga) é alvo de manejo madeireiro pela Mil Madeiras Preciosas, e, ao mesmo tempo, há em curso a instalação de empreendimento que visa a prospecção de gás pela empresa Eneva S/A, colocando duplamente a vida destes povos isolados em extremo risco, e que recomendou fortemente a suspensão imediata das atividades de exploração de gás realizada pela empresa Eneva e do plano de manejo florestal por parte da Mil Madeiras Preciosas”.
Fotomontagem BNC Amazonas