O jornalista Floriano Lins e a professora aposentada Fátima Guedes guardam em seu cóio (refúgio, em caboclês), em Parintins (AM), um trocano. Trata-se de instrumento indígena de sinalização sonora, achado no lixo e recuperado.
Isso ocorreu há vinte e cinco anos. Desde lá, o casal procura entender o porquê do descarte da peça. Lins, percussionista “nas horas vagas”, disse que encontrou o artefato em uma lixeira viciada nas bordas da Praça da Liberdade, área central de Parintins.
Surpreso, procurou saber se o instrumento havia sido jogado ali por algum vizinho da área, mas não obteve resposta que lhe levasse ao possível dono.
“A peça estava com as extremidades em processo de apodrecimento, mas mandei recuperá-la porque ela traz a inscrição ‘saterê-mawé’ e entendi que se tratava de instrumento musical importante”, explica Lins.
O trocano
O jornalista revela que somente mais tarde soube que se tratava de um trocano, instrumento usado, principalmente, entre povos indígenas do alto rio Negro.
“Até hoje desconheço a origem desse trocano, porque não obtive a confirmação do seu uso pelos saterê-mawé”, afirmou.
Ele mesmo disse que não tem conhecimento de que os saterê-maué usem ou usaram trocano para comunicação, festas ou rituais.
Sobre o povo saterê-maué
O povo saterê-maué habita um território ancestral banhado pelos rios Andirá e Marau, localizados nos municípios de Parintins e Barreirinha (AM).
Esse povo tem mais de três séculos de contato com o processo colonizador europeu. Apesar disso, ainda preserva a sua língua originária, fala o nheengatu (língua bonita) e o português. Esses indígenas mantêm suas festas coletivas e a dança da tucandeira, um ritual de passagem.
Etnólogos do final do século 19, entre os quais, Barbosa Rodrigues (1842-1909), registram a presença de um certo tamborinhi/tamborim no acompanhamento da dança da tucandeira, objeto longe de ser um trocano.
O trocano do alto rio Negro é feito de tronco madeira de lei, cavado com a auxílio do fogo, com duas câmaras de ar e um rasco de ponta a ponta, do qual se extraem sons por meio de batidas com duas baquetas.
Já o instrumento que se parece com um tamborim é bem menor, feito de madeira taboca e têm uma das suas extremidades coberta com pele de onça ou veado roxo.
Peça verdadeira, cópia ou imitação
O indigenista João Melo, lotado na unidade da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Parintins, disse que ainda é preciso reunir informações seguras para confirmar se se trata ou não de um trocano do alto rio Negro.
Ele afirmou que não tem conhecimento do uso do trocano entre os sateré-maué. Também acha estranha a inscrição sateré-mawé na peça.
“Os artefatos culturais carregam em si a própria identidade dos povos indígenas”, explicou.
O indigenista assinalou que também está interessado na descoberta da origem do trocano achado no lixo. “Não descarto nada. Tanto pode ser uma peça verdadeira, trazida de outro lugar e modificada por aqui quanto pode ser uma imitação”, especula.
Melo exaltou a sensibilidade de Lins pela salvaguarda do instrumento, evitando que ele fosse parar no aterro de lixo da cidade ou na fogueira.
Laudo do indigenista João Melo
“A peça que está na posse do Sr. Floriano Lins mede 1,30 de comprimento, por 70 cm de diâmetro, em âmago de madeira (ainda não identificada), com as duas extremidades tampadas com madeira diferente da madeira do tronco, pintadas de preto.
Dois orifícios no meio do tronco com aproximadamente 20cm de largura, uma abertura de 60cm, ligando os dois orifícios, com 4cm de largura.
A abertura possui cinco marcações de um lado e do outro, como se fossem as clavas de um violão. Batemos com um cepo nas bordas em espaços diferenciados e pudemos ouvir três notas diferentes.
O cavado dentro do tronco parece ser anterior à função de trocano. Parece que era um tronco comum, que foi tampado nas extremidades.
O oco do tronco é reto e uniforme, feito anteriormente. Não foi escavado para a função de trocano.
Contém a inscrição Sateré-Mawé e gregas com tema indígena nas duas extremidades. A inscrição não me parece ser saterê, pois se o fosse não seria necessário a inscrição.
Concluo, dizendo que se trata de uma peça preparada para servir de trocano, provavelmente para audiências não indígenas, como em festas populares ou encenações teatrais”.
João Melo Farias, chefe da Coordenação Técnica Local da Funai Parintins (AM).
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O trocano há 120 anos
Uma das descrições mais antigas do trocano é a de autoria do naturalista alemão Theodor Koch-Grünberg (1871-1927), que esteve em territórios indígenas das fronteiras do Brasil com a Venezuela, Peru e Colômbia.
Koch-Grünberg esteve na região a serviço do Real Museu da Etnologia em Berlim, entre 1904 e 1905, e percorreu o alto rio Negro e seus afluentes Içana, Caiarý-Uapés e Caricuiary; e Apapóris e Yapurá, no rio Amazonas.
Ele relata que “comprou” uma peça desse instrumento de sinalização de uma liderança tucana de Pari-Cachoeira, depois de tensa negociação. O indígena queria trocá-lo por uma espingarda de dois canos, com carregamento pela boca, mas acabou aceitando machados, terçados, fósforos e anzóis.
O que o naturalista apurou é que o trocano é um tambor de sinalização para perigo de guerra e para chamar os vizinhos para grandes festas.
Trecho da descrição Koch-Grünberg
“No tambor batem com duas baquetas esculpidas de madeira dura, cujas cabeças são revestidas de caucho, e enroladas cruzadamente com corda de fibras. Percute-se com uma baqueta na metade do cilindro num lado da fenda longitudinal, e com outra baqueta noutro lado da fenda.
Primeiro bate a mão esquerda, dando uns golpes leves num lado; depois entra a mão direita com a outra baqueta, dando um golpe mais forte, primeiro lentamente, depois sempre mais acelerando o tom principal, enquanto a mão esquerda, caindo no entremeio, com golpes mais leves, dá o acompanhamento. Os golpes ficam cada vez mais e mais rápidos, até que eles terminam num rufar prolongado.
O som, cuja vibração é favorecida pela suspensão livre do cilindro do tambor e por suas macias almofadas elásticas, ouve-se de noite a distância de milhas, como eu mesmo pude convencer-me. No Caiary-Uaupés, não se pode (ou não se pode mais) falar de uma linguagem de tambor propriamente dita, como a têm muito desenvolvida os Duala em Kamerun [Camarões, na África], que possuem tambores semelhantes.
Peça de museu
Esses tambores daqui servem somente para dar sinais, como instrumento de alarme no perigo de guerra, e para convidar os vizinhos para festividades maiores.
Alguns dias antes de uma grande festa de danças, bate-se o tambor por volta da meia noite, e também cedo na manhã do dia festivo ou de tempos em tempos para acompanhar a música de flautas.
Tocando o tambor de manhã, conservam-se fechadas as portas da maloca, para que as ondas do som não fiquem engolidas pela selva, mas se concentrem e escapem pela abertura da cumeeira da casa, para se espalharem somente no ar livre, acima das copas das árvores.
Tambores de sinalização na América do Sul
Estes tambores de sinalização estão espalhados por uma grande parte dos trópicos da América do Sul. Ao norte do rio Amazonas, eles chegam do Orinoco, onde o padre Joseph Gumilla, os descrevera e desenhara com exatidão no século 18, pelo Caiarý – Uaupés, Içá até os pés das cordilheiras [dos Andes), onde eles foram recentemente encontrados por Rivet, o pesquisador francês, entre os Jivaro.”
Theodor Koch-Grünberg, em Dois anos entre os indígenas: viagem ao noroeste do Brasil (1903-1905). Edua/ESB: Manaus, 2005.
Fotos: Floriano Lins/cedidas gentilmente ao BNC Amazonas