Esta semana eu fui apresentado às toadas do boi Garantido para o ano de 2024. A lista traz algumas letras excelentes, mas, lamentavelmente, deparei-me com a morte definitiva de um instrumento que foi a essência do ritmo do boi-bumbá no Festival Folclórico de Parintins: o charango.
A toada de boi-bumbá é uma criação genuína de Parintins. Nasceu da criatividade e inovação dos poetas, cantores e compositores locais. Evoluiu, se refinou, viajou e conquistou reconhecimento nacional e até mesmo mundial.
Tornou-se o ritmo do Amazonas, a expressão musical de um estado que ansiava por uma identidade musical própria. Isso, sem dúvida, foi um marco histórico. Surge, então, a pergunta: o que levou a toada de boi-bumbá a alcançar tal sucesso, a ponto de se tornar a identidade musical de um estado e de toda uma região?
A singularidade do charango
Sem dúvida, o segredo do êxito da toada foi a sua singularidade. Um ritmo incomparável, envolvente e empolgante, nascido da fusão de diversos elementos culturais, da criatividade e da combinação de diversos instrumentos.
E,entre eles, destacava-se o charango, instrumento cujo som se sobressai por sua brilhante ressonância.
Nenhum outro instrumento se harmonizou tão bem e enriqueceu tanto a toada quanto o charango. Foi ele que, verdadeiramente, deu o toque distintivo às toadas dos bois de Parintins. Este pequeno instrumento de dez cordas tem uma trajetória fascinante, que reflete a rica interação entre as culturas na região dos Andes.
O charango tem suas raízes originárias no período da colonização espanhola na América Latina, mas desde os tempos pré-colombianos já existiam ancestrais seus.
A sua evolução demonstra como a música pode transcender fronteiras e resistir ao tempo, preservar antigas tradições e, ao mesmo tempo, adaptar-se às influências modernas.
O charango, portanto, é verdadeiramente uma joia da cultura andina, e sua introdução nas toadas dos bois de Parintins foi fundamental para a construção de um ritmo original na Amazônia brasileira. Foi, com certeza, o elemento que encantou e inspirou pessoas em todo o Brasil.
O apagamento é um erro
Contudo, ao longo das últimas produções musicais, tanto do boi Garantido quanto do boi Caprichoso, o charango tem gradualmente perdido importância. Ele é cada vez mais relegado ao segundo plano.
Ano após ano, os arranjos, as gravações e as mixagens o prejudicam e o apagam ainda mais. Isso é um grande erro.
Atualmente, o que predomina nas toadas dos bois de Parintins são strings , pads , synths , metais, órgãos e até mesmo guitarras.
Um exagero.
Não sou contra a inovação ou a experimentação. Afinal, a toada evoluiu precisamente por meio de experimentações. Inclusive, o próprio charango, assim como o teclado e o naipe de metais, é resultado de experimentação.
No entanto, acredito que há limites para tanto incremento.
Nesse sentido, o “desaparecimento” do charango das toadas não representa uma evolução musical. Pelo contrário, trata-se de um retrocesso. Um erro técnico e, sobretudo, um erro cultural.
O charango deve ser o protagonista nos arranjos, não ficar escondido nas camadas mais profundas e quase inaudíveis da mixagem.
Nas toadas dos bois para o ano de 2024, pelo menos as que ouvi até agora, mesmo com fones de ouvido, é difícil discernir claramente a presença do charango. É preciso um enorme esforço para ver que ele ainda está lá, desprezado e quase morto.
Conclusão
Concluo, enfatizando que o sucesso da toada, em nível local, regional, nacional e mundial, deve-se à sua originalidade, à sua harmonização diferenciada, à sua sonoridade agradável e única. E o charango foi um dos responsáveis por essa singularidade.
Além disso, ninguém deseja ouvir mais do mesmo. Strings , pads , synths , metais, órgãos, guitarras são importantes? Sim, claro que são. No entanto, esses elementos são comuns em muitas músicas populares brasileiras.
A toada não deve ser uma imitação de axé music, de piseiro, de calypso ou qualquer outra tendência musical presente no país. Na música, menos é mais.
Portanto, é crucial resgatar o charango nas toadas de boi-bumbá.
Preencher a toada com uma variedade de instrumentos não fará com que o ritmo de Parintins se destaque. Pelo contrário, apenas o tornará mais um ritmo comum, perdendo sua singularidade e caindo na mediocridade musical tão prevalecente em nosso país.
É importante entender que a identidade cultural não é afirmada pela homogeneidade, mas, sim, pela heterogeneidade, pela diversidade, pela diferença.
O ritmo de Parintins, a toada de boi-bumbá, não pode ser mais do mesmo.
A toada precisa continuar diferente, mantendo sua singularidade e especificidade. Neste sentido, ao menos para mim, é essencial devolver o protagonismo ao charango e não o deixar desaparecer das toadas.
*O autor é sociólogo
Arte: Gilmal
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