Aldenor Ferreira*
Do ponto de vista sanitário, o Brasil vive hoje o seu momento mais trágico. Nunca uma pandemia havia ceifado tantas vidas no país como a de agora. Diante desse cenário caótico, o uso de máscara pressupõe uma ética, a ética do cuidado.
Todavia, mesmo diante de um quadro que apresenta mais de meio milhão de mortos por Covid-19 no país, ainda há pessoas e grupos que desprezam o uso de máscara, método de prevenção definido por vários estudos científicos como eficaz na contenção da propagação do novo coronavírus.
Negar, desqualificar e, fundamentalmente, não usar a máscara, não é uma atitude meramente política, pautada por alguma ideologia, é uma atitude desumana, uma vez que o cuidado de si e de outrem são traços humanos universais.
Sobre isso, a filósofa norte-americana Nel Noddings (1986) citada por Juliana Missaggia no texto Ética do cuidado: duas formulações e suas objeções (2020), reconhece que “há um desejo humano básico e universal de cuidar e ser cuidado”.
Não há, em verdade, afirma a autora, “sequer a possibilidade de sobrevivência de nossa espécie sem cuidado parental”.
Nesse sentido, entendo que o uso da máscara está ligado, primeiramente, ao cuidado que eu tenho comigo e que estendo voluntariamente ao meu semelhante, seja ele(a) um familiar ou um(a) compatriota.
Em síntese, ao usar a máscara, o que eu transmito não é o vírus, mas um valor ético e moral natural em mim: o de me importar.
Sobre esse ponto, Noddings, novamente citada por Missaggia, afirma que se importar é um sentimento natural, “algo que seria comum a qualquer ser humano, com exceção de casos patológicos, ou seja, pessoas incapazes de se conectar emocionalmente com seus semelhantes”.
Assim, importar-se com alguém “faria parte da nossa sociabilidade mais básica e a moralidade, portanto, seria um desenvolvimento de tal sentimento natural”, afirma a autora.
Como dito, não se trata apenas de uma posição política e ideológica, ou mesmo de falta de informações técnicas sobre o uso da máscara, mas, sim, de uma questão ética.
Missaggia afirma que “o desejo de ser moral ou agir de modo moralmente correto está fundamentado na necessidade de estar conectado aos outros, a qual é, como já mencionado, em parte uma necessidade oriunda também das condições da nossa própria sobrevivência enquanto espécie”.
Pensando nisso, questiono: o cuidado e o ato de se importar são mesmo sentimentos humanos universais ou deveríamos passar a vê-los como inválidos? Coloco isso pensando que, apesar de não ser apenas no Brasil que o uso de máscara tem sido recusado, por aqui há uma pedagogia do não uso, lecionada pelo próprio mandatário da nação, fato que difere de outros países.
Em uma aproximação conceitual de Nel Noddings e Michel Foucault, entendo que se “importar com” é, também, “cuidar de si”. Em seu estudo sobre esse conceito foucaultiano, intitulado A ética em Michel Foucault: do cuidado de si à estética da existência , Bruno Abilio Galvão (2014) o sintetiza como vemos a seguir.
“A ética do ‘cuidado de si’ consiste em um conjunto de regras de existência que o sujeito dá a si mesmo promovendo, segundo sua vontade e desejo, uma forma ou estilo de vida, culminando em uma ‘estética da existência’. O cuidado de si não consiste em uma ética em que o sujeito se isola do mundo, mas sim retorna para si mesmo para depois agir”.
O cuidado de si, afirma Galvão, “corresponde a uma postura ética diante do mundo em que o indivíduo, antes de agir sobre este, volta-se para si reflexivamente, agindo sobre si e depois sobre o mundo”. Portanto, a proposta de Foucault “consiste em cuidar de si para poder cuidar do outro, exigindo responsabilidades para com o mundo”.
Dessa forma, a pedagogia do não uso da máscara, lecionada diuturnamente pelo presidente da República e por aqueles que o cercam e o seguem, não revela apenas descumprimento das regras sanitárias vigentes no país, mas também falta de empatia e de responsabilidade consigo, além da ausência da ética do cuidado, do ato de se importar.
Tudo isso aponta que a prática de deixar de lado a máscara é desumana, ao considerar o “importar-se” como um valor humano universal.
Assim, por você e pelo outro: importe-se, use máscara!
*Sociólogo
Arte: Alex Fideles