Por Mayanne Bader , enviada especial a Curitiba
Dia histórico. Dia de guerra.
Sete de abril de 2018. Um dia histórico na política brasileira.
Há pouco mais de dois anos, eu resolvi sair de Manaus, onde construí minha carreira no jornalismo, para seguir novos rumos profissionais. Passei por jornais impressos, agências de comunicação, propaganda e marketing, revistas, assessorias de imprensa… Mais de 15 anos contribuindo com a comunicação do Amazonas.
A cidade escolhida foi Curitiba-PR. E, até setembro de 2017, eu não trabalhava diretamente com algum veículo do Amazonas.
No dia 13 de setembro de 2017, por volta do meio-dia, fui contatada por colegas do BNC Amazonas que almejavam fazer uma transmissão inédita de Curitiba do segundo depoimento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao juiz Sérgio Moro, na Justiça Federal sediada na capital paranaense.
Aquele dia foi desafiador, mas não tanto quanto o dia 7 de abril de 2018. Naquele dia de setembro, eu consegui chegar à sede da Justiça Federal com tranquilidade, mesmo com um tempo apertado. Às 14h, comecei a fazer a transmissão da chegada do Lula. Depois, fui para onde os militantes pró-Lula se reuniram, a praça Generoso Marques, e onde o ex-presidente fez um discurso.
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Sem credencial de imprensa, eu me enfiei no meio da militância, que parecia apática e sem brilho. No meio do povo, consegui entrevistar a senadora Gleisi Hoffman, o senador Lindbergh Farias e mais alguns políticos. Foi tudo tranquilo. Não houve sequer um olhar atravessado em minha direção naquele dia.
Mas, o que eu vi ontem, 7 de abril de 2018, foi uma praça de guerra em frente à sede da Polícia Federal em Curitiba. E falo isso em tom de relato porque é a única coisa que me cabe diante do que vi, ouvi e senti na pele.
Como jornalista, cobri inúmeros fatos, sempre relatando e me mantendo isenta diante de tudo. Sempre busquei ouvir os dois, três, ou mais lados de qualquer situação. Muitas vezes, me desdobrava em horas intermináveis de trabalho, madrugadas a dentro, em coberturas extensas, em situações pouco confortáveis para qualquer ser humano.
A cobertura jornalística de fatos como a prisão do ex-presidente Lula dá certa adrenalina em qualquer profissional do jornalismo, seja o repórter, seja o câmera, seja o motorista da equipe. Há um envolvimento com a notícia e em relatar o que é visto e falado.
Ontem, um senhor de uma equipe de TV não parava de perguntar se o ex-presidente já havia chegado em Curitiba. De cinco em cinco minutos, eu ouvia: “E, aí, alguma novidade?”.
Era esse o clima de apreensão pela chegada de Lula à sede da Polícia Federal em Curitiba. Era uma apreensão que não era exclusiva da imprensa. Afinal, Lula é o primeiro ex-presidente brasileiro condenado por corrupção e lavagem de dinheiro.
Quando cheguei ao local, à tarde, logo entrei ao vivo pelo BNC Amazonas para informar que faríamos entradas exclusivas durante aquele dia. Para chegar onde eu estava naquele momento, exatamente na frente da sede da PF, eu conversei com PMs que faziam o cerco e gentilmente pedi que liberasse minha entrada, uma vez que estava atuando como freelancer e não tinha crachá.
Fui liberada.
Ao fazer o primeiro ao vivo, mostrei a militância pró-Lula cantando, batucando, empunhando bandeiras e entrevistei alguns deles, que disseram o porquê gostam e confiam no ex-presidente, o quanto suas vidas mudaram a partir de ações do governo Lula e o quanto são gratos. Por isso, estavam ali.
Encerrei a primeira transmissão e fui atrás de algo para comer. Eu sabia que iria demorar porque, naquele momento, Lula nem havia saído da sede do Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo do Campo-SP. Ele ainda teria que sair de lá, ir para a PF em Congonhas, depois fazer o corpo de delito, vir para Curitiba e ainda pegar um helicóptero do aeroporto até a sede da PF na capital paranaense. Ou seja, a fome iria bater e eu resolvi ir atrás de algo.
Mas eu não poderia sair daquele reservado, em que imprensa e militância pró-Lula se misturavam porque meu retorno dificilmente seria liberado. Então, entrei na área onde a maioria da militância estava.
Encontrei barracas de pipoca, de sanduíche, de churrasco, de adesivos com o 13 estampado e de bebidas, as mais diversas. Comprei um sanduíche e voltei para onde uma parte da imprensa estava, em frente a uma casa em que foi possível ver a equipe da Band dentro.
Estava tudo calmo.
Até Lula decidir se entregar.
A partir dali, quem estava de vermelho na frente da PF começou a entoar palavras de ordem, cantar músicas e, a cada vez que alguém da imprensa tentava mostrar a situação, era hostilizado.
Entrei ao vivo de novo. E me deparei com uma equipe do SBT levando ovadas. Mostrei os ovos no chão e comecei a relatar o que havia ocorrido. Estava exatamente na frente do portão de entrada da Polícia Federal, onde um grupo segurou incansavelmente uma bandeira do PT e cartazes.
Ali, uma das militantes começou a gritar comigo e me obrigar a usar um adesivo do PT. Disse que estava trabalhando e que não colocaria adesivo de nenhum lado. Ela exigiu o crachá e eu disse que estava ao vivo. Só após falar que estava trabalhando para o BNC Amazonas a mulher se acalmou e me pediu desculpas.
Achei que tudo tinha se acalmado e saí de perto daquele grupo. Continuava ao vivo, mostrando uma turma cantando e batucando, quando veio outro grupo na minha direção, gritando termos como “mídia golpista” e “coloca o adesivo agora ou sai daqui”.
De repente, um grupo grande me envolveu e tentou me atacar. Eu dizia que estava trabalhando e eles não acreditavam. Achavam que eu era alguém da Globo disfarçada.
Dois rapazes vestindo camisas da União da Juventude Socialista (UJS) se colocaram entre mim e os militantes. Esses dois rapazes não deixaram com que ninguém encostasse em mim.
E eu fui acuada em frente à casa onde estava a equipe da Band. Fiquei encostada à grade da garagem, enquanto uma centena de pessoas gritava “mídia golpista” e “sai daqui” e dois rapazes me protegiam.
Eles não queriam ouvir, só atacar.
Eles não entendiam que eu estava fazendo meu trabalho e mostrando a manifestação deles. Achavam que qualquer um com um celular, um microfone e uma câmera na mão eram os responsáveis pela linha editorial das grandes emissoras.
Pedi abrigo na casa, mas o funcionário da Band, que acompanhava tudo de dentro da casa, disse que não tinha a chave do portão, trancado por cadeados.
Até que colegas da imprensa me puxaram e fizeram um cordão de isolamento.
Ainda estava ao vivo e mostrei tudo o quanto podia, mesmo enquanto os militantes batiam no meu telefone, que gerava a transmissão.
Em poucos minutos, vi na minha frente um senhor de cabelos e barba brancos, pedindo desculpas. Era o Dr. Rosinha, presidente do PT do Paraná. Ali, ao vivo, ele pediu desculpas públicas.
Enquanto isso, um grupo de 15 pessoas, mais ou menos, discutia entre si os ataques à qualquer mídia que fazia a cobertura daquela situação. Uma das mulheres mais indignadas – e também uma das mais ferozes durante meu ataque pela militância – gritava: “Eu não aceito essa mídia golpista. Todos têm que apanhar mesmo”.
Depois de alguns minutos, encerrei a transmissão e fui respirar, beber uma água. Me afastei dos grupos e fiquei próximo da área isolada onde, do outro lado, estava o grupo contra o Lula. Percebi que ali era uma área onde a imprensa internacional estava.
Cheguei junto ao PM e expliquei minha situação. Do meu lado, o repórter e o câmera da RTP de Portugal. O repórter também sem credencial. Foi salvo pelo câmera, que tinha uma credencial no bolso.
Eu fiquei no canto, aguardando instruções do PM. Em alguns minutos, fui liberada. E essa foi a melhor decisão que tomei naquele dia inteiro.
Entre um grupo e outro, a cada vez que se aproximava o momento da chegada do Lula, era possível perceber a tensão aumentando.
Quase todas as equipes de imprensa se dirigiram para aquele local reservado ao perceberem isso e deixaram a área em que manifestantes tinham acesso direto à imprensa.
Foi no momento em que o helicóptero com o ex-presidente fazia o procedimento de aterrisagem no heliponto da PF que o clima de guerra se instaurou.
Bombas e tiros de borracha foram ouvidos. Em um minuto a militância pró-Lula foi dispersada. Muitas bombas, muito mais que tiros. De onde estávamos só era possível ver a polícia avançando de dentro da sede da PF em direção aos manifestantes. E muita, muita fumaça.
Alguns jornalistas estavam equipamentos de proteção individual (EPIs), como máscaras e capacetes.
Havia uma decisão da Justiça estadual do PR para que não houvesse manifestantes no entorno da PF de Curitiba, a pedido da Prefeitura de Curitiba. A decisão saiu poucos minutos antes da chegada do helicóptero com Lula.
Dr. Rosinha ainda negociava com a PF e a PM como seria a retirada das pessoas dali, quando houve o estouro da primeira bomba.
Nove pessoas se machucaram.
Durante a transmissão ao vivo, eu contei pelo menos quatro crianças machucadas. Uma professora da rede municipal levou um tiro de borracha na perna direita e sangrava.
No final, sobraram as barracas do comércio e pertences pessoais largados durante a correria. E um profundo lamento por tudo.
No fim, o dia histórico virou guerra.
Foto: Reprodução/Mayanne Bader