Teatro sem ensaio
No texto, o autor explora poeticamente a complexidade da escrita e da existรชncia, questionando o teatro sem ensaio da vida e as profundezas da prรณpria existรชncia.

Diamantino Junior
Publicado em: 28/10/2023 ร s 13:07 | Atualizado em: 28/10/2023 ร s 13:07
Por Flรกvio Lauria*
Por que a escrita ร s vezes fica tรฃo difรญcil?
Esta indagaรงรฃo leva-me a pensar sobre a liturgia da escrita. Serei capaz de classificรก-la? Nรฃo. Nem quero.
Nรฃo gosto de definiรงรตes e sou tรฃo indisciplinado no meu caรณtico pensar que jamais me arvoraria a adotar conceitos invariavelmente redutores.
Opto pelo jorro espontรขneo, transporte para algum incerto lugar. Preciso de pousos, mas que sejam em terras longรญnquas… virgens… receptivas ao meu desassossego.
Nรฃo tenho receitas para a vida. Nenhuma servirรก de suplemento ร s perplexidades do meu existir.
Sou um vivente ร s pressas, e, na maioria das vezes, amontoo descasos sobre descasos, atรฉ perder-me por completo nessa pilha imensa de papรฉis amarelecidos.
Confesso que procuro arrumรก-los, dar ordem ao que nรฃo tem ordem โ entรฃo desisto. Nรฃo me conformo com as renovadas desistรชncias. Tento outra vez… e mais… e mais, hรก sempre resรญduos por catalogar.
Nรฃo sei como se acerta na vida e nem porque nela se erra. A vida รฉ um precรกrio teatro sem ensaio. Somos todos protagonistas de uma contรญnua cena, distante de prรฉvios arranjos, os atos se sucedem, alheios a intervalos ou a merecidos descansos.
Descansa-se de tudo: menos da vida. E nรฃo hรก bastidores nessa montagem ininterrupta. Anda-se ร mostra, a nu, apenas com o anteparo de trajes postiรงos.
Trago a consciรชncia da minha instintiva vocaรงรฃo. A percepรงรฃo me serve de bรบssola para atravessar mares tempestuosos. Invejo aqueles que sรฃo racionais, mas nรฃo consigo aderir a julgamentos precipitados nem a simplรณria evidรชncia de certos fatos.
Por mais que me incline a versรตes pragmรกticas, delas fujo com receio de embaralhar-me nas dรบvidas de mim.
Transito entre paradoxos e os contrรกrios nรฃo me afligem, antes, apaziguam-me. Aspiro a difรญceis escaladas โ quanta ambiรงรฃo de Ser! โ, travo batalhas interiores ao balanรงo do pรชndulo do relรณgio. Picos de temperatura me aรงoitam. Viajante perpรฉtuo sou, Jamais saio, todavia, do lugar โ fixo e imobilizado pelos redemoinhos da alma.
Nรฃo existem pausas na estrada do Ser. ร viver e viver e viver. Aceitando a fragilidade dos fortes e a firmeza dos fracos. E, sobretudo, acreditando no potencial de imaginar, de ir alรฉm dessa realidade tรฃo mesquinha e avara.
Caros leitores e leitoras, talvez a palavra represente o solilรณquio que mais me agrada. Por isso dela faรงo uso, mesmo que o teatro da vida nรฃo me permita a menor revisรฃo antes do espetรกculo de estreia.
Enfrento uma plateia anรดnima que tem rostos que conheรงo, todos os rostos terminam por ser familiares. Do lado oposto a mim mesmo, por acaso tambรฉm nรฃo estou?
A proximidade me assusta porque o espelho nรฃo apenas deslinda a figura, mas desenha o esboรงo de uma humanidade uniforme.
Nesse mimetismo, por vezes cruel, faรงo parte de uma multidรฃo que se apresenta amorfa.
Somos todos iguais entre os iguais, assim como diferentes entre os mesmos iguais. Nรฃo hรก incoerรชncia nesse errante conjugaรงรฃo.
Escrevo em consequรชncia de uma necessidade existencial. Revolvo as entranhas, remexo em casas de marimbondo. A teia nรฃo รฉ simples, hรก linhas transversas, outras emaranhadas, ainda as que se esgarรงam ao sabor da turbulรชncia. Nรฃo me adapto ร s linearidades, persigo caminhos em curva, do cimo ao declive, o salto se faz abruptamente.
A palavra ganha forรงa quando a ela atribuo o peso das significรขncias. As vestes se rasgam โ eu me transformo numa escritura sem nome.
E o texto se agrega ร pele, imanรชncia do eu.
Paramento-me de sinais ortogrรกficos. Serei apenas uma letra sem som?
Perdoem-me, este รฉ um texto de cumplicidade com o leitor.
*O autor รฉ advogado
Foto: pixabay