Musashi, um livro para compreender o mundo como Universo

Wilson Souza Nogueira

Publicado em: 02/05/2019 ร s 17:20 | Atualizado em: 02/05/2019 ร s 17:20

Wilson Nogueira (texto e fotos)

 

Os trรชs volumes da ediรงรฃo brasileira mais recente de Musashi (Estaรงรฃo Liberdade, 2017), de Eiji Yoshikawa, imergem na cultura japonesa dos senhores feudais do final do sรฉculo 16 e comeรงo do sรฉculo 17, cujo exercรญcio e controle do poder era determinado pela habilidade dos samurais.

ร‰ nesse ambiente que viveu, possivelmente entre 1584 e 1645, o legendรกrio Myamoto Musashi, o espadachim que, pelo caminho do zen-budismo, alcanรงou a perfeiรงรฃo tรฉcnica e espiritual de lutar com duas espadas, o estilo Niten Ichi, depois de passar por todas as provaรงรตes que se estenderam da terra ao cรฉu.

Yoshikawa (1892-1962) ajudou a tornar Musashi uma personagem viva do folclore japonรชs, porque sua obra, primeiramente publicada em 10.013 episรณdios, no jornal Asahi Shimbun, entre 1935 e 1939, conquistou seguidas ediรงรตes em livros, inspirou HQs, teatro, cinema, sรฉries de TV etc.

Os 10.013 episรณdios foram distribuรญdos por Yoshikawa em sete livros: A terra, A รกgua, O fogo, O vento; O Cรฉu, As duas forรงas e a Harmonia final.

A ediรงรฃo ร  qual me refiro estรก em trรชs volumes: A terra, A รกgua e O fogo; O vento e O cรฉu; As duas forรงas e a Harmonia final. Sรฃo 1800 pรกginas de uma leitura surpreendente, tensa, instigante e reflexiva.

Dessa viagem ao Japรฃo dos samurais, destaquei trechos que se relacionam, principalmente, com entrelaรงamento da formaรงรฃo tรฉcnica, espiritual e humanรญstica do verdadeiro guerreiro que se tornou Musashi, a partir do momento em que se descobre capaz de romper com o ser bruto, selvagem e sanguinรกrio que habita o seu corpo e sua alma.

Pulsam nessa litura enigmas que nรฃo se revelarรฃo sem um profundo conhecimento das filosofias orientais, como o budismo e o xintoรญsmo. Mas os percalรงos, longe de serem problema, sรฃo mais uma motivaรงรฃo para a descoberta do prรณprio leitor como ย personagem do prรณprio livro.

O comeรงo deste livro รฉ um waza-ari na alma do leitor que, depois de passar por uma vertigem, descobre-se em um labirinto de cenas, cenรกrios, diรกlogos, aรงรตes, sensaรงรตes e tramas a se desenrolarem de um novelo de vรกrias pontas e cores.

ร“dio, amor, compaixรฃo, beleza, intolerรขncia, crueldade e trapaรงas sรฃo ingredientes que revelam โ€“ do comeรงo ao fim โ€“ as virtudes e os defeitos humanos.

Takezo, 17 anos, โ€“ assim รฉ chamado Musashi โ€“ acorda, atรดnito, na regiรฃo de Sekigahara, palco da batalha final(1600) entre a coalizรฃo do Oriente e a do Ocidente e, depois de alguns passos cambaleantes, reencontra, no mesmo cenรกrio, o seu amigo e colega de combate Matahachi. Ambos renascem do lodaรงal de sangue e cadรกveres putrefatos, resultados da luta pelo poder entre donos das terras japonesas.

ร‰ curioso imaginar que Takezo e Matahachi partiram em busca de reconhecimento e fama. Mas, ao terminar a guerra, como soldados derrotados e perseguidos, haviam eles perdido o rumo perante โ€œa realidade sombriaโ€. Takezo e Matarachi, restos de guerra, caminham juntos atรฉ as forรงas do universo separรก-los, para depois de uma longa jornada juntรก-los humanizados.

Assim como a maioria dos guerreiros apรณs o fim de uma guerra fracassada, Musashi, perseguido, tornou-se um bandoleiro, um ser temรญvel e impiedoso que aterroriza atรฉ mesmo a Vila em que nascera. Havia nele, todavia, o รญmpeto pelo aprimoramento da sua habilidade com a espada. Ele se descobre nesse caminho aos 13 anos, quando realiza o seu primeiro duelo.

Matarachi, por sua vez, assentara-se em uma vida acomodada, oportunista e trapaceira, sem maiores preocupaรงรตes com o prรณprio destino. Assim, ele passa a maior parte do tempo do romance na companhia de Okoo, a viรบva que, juntamente com a enteada Akimiย  ย ย acolheu a ele e a Takezo em estado de convalescรชncia.

ร‰ a partir de Takezo e Matarachi que surgem as personagens e os mais variados contextos do cotidiano e da histรณria japonesa, marcada ainda por tensรตes entre os feudos, embora essa รฉpoca esteja em processo de unificaรงรฃo pelo vitorioso reino Tokugawa.

Ao retornar a Myamoto, sua terra natal, para visitar a irmรฃ Ogin (seus pais jรก estavam mortos), Takezo escapa das armadilhas dos seus perseguidores, mata-os e foge para a floresta. A mรฃe de Matarachi, a velha Osugi, se transforma em persistente caรงadora da cabeรงa de Takezo, por considerรก-lo responsรกvel pela ida do filho a Sekigahara. Ogin suspeita que o filho esteja morto.

O monge zen-budista Takuan dispรตe-se a capturar Takezo, desde que o fugitivo seja punido a partir das suas leis โ€“ โ€œ[…] as minhas leis sรฃo mais humanas que as outrasโ€.

ร‰ o que acontece: o monge entra na floresta acompanhado de Otsu, รณrfรฃ que vive no templo Shippoji, eximia tocadora de flauta, ex-noiva de Matahachi. Ela acabara de ser comunicada desistรชncia do noivo, por meio de carta que lhe foi enviada por Okoo.

Musashi no mundo do Ukiyo-E. Ed. Esp./Brasil

O terrรญvel Takezo comove-me com a mรบsica dela e se entrega ao monge โ€“ โ€œ[…] dizia-se que a mรบsica tinha o poder de comover atรฉ mesmo o diaboโ€, disse Takuan sobre a moral do poder da mรบsica em uma lenda japonesa.

O monge, depois de tenso diรกlogo com os aldeรตes que clamavam sangue, entaniรงou Takezo e o dependurou nos galhos de um centro centenรกrio, para que em quatro ou cinco dias os urubus lhe arrancassem os olhos. Takezo รฉ salvo por Otsu, que se apaixona por ele.

Antes desse episรณdio, Takezo ouvira uma prelaรงรฃo do monge Takuan sobre โ€œo homem verdadeiro, o verdadeiro bravo, aquele que teme o que deve ser temido, poupa e resguarda a vida โ€“ esta perola preciosa โ€“ e procura morrer por causa dignaโ€.

O monge reconhece a forรงa fรญsica e a firmeza de carรกter herdada por Takezo ao vir ao mundo โ€“ ele filho de Shinmen Munisai, de linhagem guerreira โ€“, mas, adverte-o de que atรฉ aquele momento aprendera apenas o lado sombrio da arte da guerra, e nรฃo cultivou a sabedoria e a virtude.

Sugere entรฃo ao jovem guerreiro que, caso venรงa o castigo, se enverede por estes dois caminhos: โ€œ[…]Aperfeiรงoar-se no duplo caminho das letras e das armas โ€“ conhece a expressรฃo. Mas que significa โ€œduplo caminhoโ€? Sem dรบvida nรฃo significa que dois sรฃo os caminhos a serem percorridos em busca do aperfeiรงoamento; significa, isto sim, que os dois caminhos das letras e das armas, estรฃo juntos e perfazem um รบnico caminho. Compreendeu, Takezo?โ€.

Essa, ao meu ver, รฉ a passagem que Yosokawa nos remete ร  compreensรฃo do pensamento que forja o jeito de viver โ€“ por que nรฃo, de morrer โ€“ do povo japonรชs. A pergunta de Takezo pode muito bem se dirigir ao leitor: โ€œCompreendeu, leitor?โ€. ร‰ pelo โ€œcaminho do meioโ€ e nรฃo pelo modo maniqueรญsta do bem ou do mal que a vida โ€“ entre as quais, as dos seres humanos โ€“ caminha e se encaminha cotidianamente.

Mas Takezo ainda รฉ apenas uma ser afetado pelo ensinamento do monge e nรฃo transformado. Nas palavras de Takuan, o jovem guerreiro โ€œรฉ um pequeno tigre de presas afiadas que ainda nรฃo foi totalmente domesticadoโ€. Takuan recaptura Takezo na cidade de Himeji, onde pretendia libertar a sua irmรฃ Ogin, presa acusada de protegรช-lo.

ร‰ com o senhor de Himiji, Ikeda Terumasa, que Takuan decide a pena de Takezo: passar trรชs anos preso em um quarto escuro da torre do castelo desse clรฃ, aliado dos vitoriosos de Sekighara. O aposento estava abarrotado de livros: โ€œHavia desde literatura japonesa e chinesa atรฉ tratados zen e histรณria do Japรฃoโ€.

Ao cerrar a porta da prisรฃo, Takuan disse ao jovem prisioneiro: โ€œโ€“ Leia tudo o que lhe for possรญvel […] considere-se dentro do ventre materno, preparando-se para o nascimento. Aos olhos da carne, este recinto nada mais รฉ que um escuro quarto selado. No entanto, olhe com atenรงรฃo e medite: a sala estรก repleta de luz, luz que todos os tipos de sรกbios da China e do Japรฃo ofereceram ร  civilizaรงรฃo. Tanto poderรก viver enclausurado num escuro quarto selado, ou passar os dias numa sala cheia de luz โ€“ a escolha รฉ sua e cabe ao seu espรญrito decidirโ€.

Musashi no mundo do Ukiyo-E. Ed. Esp./Brasil

 

Ao sair da prisรฃo, onde se abeberou, entre outras leituras, nas estratรฉgias de guerra de Sun-tzu e na filosofia de Confรบcio, Takezo รฉ rebatizado por Terumasa, com a aquiescรชncia de Takuan, com um novo nome: Myamoto Musashi.

Sua trajetรณria, a partir desse momento, รฉ marcada por uma vida nรดmade, maltrapilha, percorrendo as terras japonesas, ora recolhido em templos budistas, nas montanhas ou nas cidades em busca de aperfeiรงoamento tรฉcnico, espiritual e humanista. Alรฉm do recolhimento espiritual, Musashi visita academias de estilos reconhecidas no paรญs.

A lado humano de Musashi pode ser simbolizado pela aceitaรงรฃo da companhia dos jovens Joutaro e Iori, os quais, em momentos distintos, aprendem com ele arte da espada.

O primeiro estava abandonado pelos pais e o segundo era รณrfรฃo. Sรฃo esses os momentos que tornam singular a vida de um samurai andarilho em busca do caminho verdadeiro da espada.

Os duelos que lhe renderam fama imediata foram os realizados com os membros da academia Yoshioka, de Kyoto. Musashi, em ocasiรตes distintas, foi derrotando um por um dos mais graduados da Yoshioka, entre eles, os herdeiros diretos de Yshioka Kenpo, o fundador da academia.

Nos duelos, sua habilidade era espantosa, tanto no modo de surpreender os adversรกrios em aรงรฃo quanto na capacidade de sumir sob olhos deles. Vale ressaltar que o duelo รฉ um ritual do contexto da vida do guerreiro: um gesto honroso, pelo qual vida e morte se encontram no mesmo ponto.

Nessas lutas havia um fator preponderante para ele: a conquista do verdadeiro caminho da espada: o estado zen. โ€œ[…] a diferenรงa (entre um cientista militar e um espadachim) estรก no modo de perceber as coisas. De um lado existe uma ciรชncia militar baseada no raciocรญnio lรณgico, e do outro, o caminho da espada, essencialmente espiritual.

A ciรชncia militar espera que determinada provocaรงรฃo produza determinada resposta. Jรก o caminho da espada รฉ um estado de espรญrito que possibilita detectar a provocaรงรฃo antes mesmo que ela seja percebida por olhos ou pele, e a evitar a รกrea de perigoโ€.

Musashi entendia, tambรฉm, que os caminhos da espada e da ciรชncia de governar, em seus respectivos estรกgios mais evoluรญdos, tambรฉm fazem parte do mesmo espรญrito. Ele mesmo transformou a planรญcie de Kanto, um lamaรงal, em รกrea agriculturรกvel, quando os seus prรณprios moradores sequer imaginavam esse feito.

Musashi no mundo do Ukiyo-E. Ed. Esp./Brasil

O momento crucial para Musashi alcanรงar o mais elevado nรญvel de conhecimento se dรก por meio do monge Gudo, de quem cobrava explicaรงรตes sobre uma possรญvel razรฃo para ainda nรฃo ter conquistado estado de iluminaรงรฃo. Musashi queria ser aceito como seu seguidor, igual o amigo Matahachi, que agora havia se decidido pela vida religiosa. Mas Gudo parecia desprezรก-lo.

Aconselhador por Matahachi, Musashi persiste em seguir o monge. Assim, em um certo momento, o religioso pressiona um bastรฃo sobre a terra e corre em torno dele, formando um cรญrculo, e continuou a sua caminhada, sem dirigir uma palavra a Musashi, que se pรดs a perguntar: โ€“ Um cรญrculo, para quรช?

Neste trecho encontra-se a chave de toda a busca de Musashi:

โ€œPor mais que o contemplasse, o cรญrculo era apenas um cรญrculo. Interminรกvel, inquebrantรกvel, sem extremidades, sem hesitaรงรตes, era um cรญrculo. Ampliando-o infinitamente, era a prรณpria representaรงรฃo do mundo. Diminuindo-o radicalmente, ali estava ele, Musashi, em seu centro.

Com sรบbito e rigoroso movimento, extraiu a espada com a mรฃo direita e a estendeu literalmente: a sombra compรดs no chรฃo a letra โ€œoโ€ do silabรกrio hatakana, mas o mundo continuava um cรญrculo, rรญgido e inquebrรกvel. Se ele e o mundo eram uma รบnica identidade, a mesma lรณgica poderia ser aplicada com relaรงรฃo ao prรณprio corpo. E nesse caso o que mudara de forma era apenas a sombra projetada no chรฃo.

โ€“ ร‰ apenas uma sombra! โ€“ descobriu Musashi. A sombra nรฃo era ele prรณprio.

A muralha com a qual se chocava no decorrer da sua carreira tambรฉm era uma sombra, a sobra do seu espรญrito perdido em dรบvidas.

Com um kiai, trespassou o espaรงo acima da cabeรงa com a espada.

A prรณpria sombra empunhando agora tambรฉm a espada curta na mรฃo esquerda projetou-se na terra, compondo uma vez mais um formato diferente. O mundo, porรฉm, nรฃo mudara de forma. Duas espadas eram uma โ€“ e as duas um cรญrculo.

โ€“ Ah!…โ€“ exclamou.โ€

Musashi, a partir desse momento, รฉ um ser transformado porque compreende que seu corpo, alma e aรงรตes sรฃo partes e todo do mesmo processo de conhecimento e reconhecimento do mundo. E assim ele parte para o seu duelo final com Kojiro, o qual reconhecia como o espadachim mais preparado pela enfrentรก-lo.

E quanto ao contexto histรณrico do Japรฃo da รฉpoca, o desenrolar e desfecho do romance, melhor mesmo รฉ conferi-los numa leitura prazerosa. Deixe-se levar por essa viagem.