Passaram-se cinco anos desde o meu encontro com aquele passageiro e ainda hoje as seis palavras que ele me falou continuam martelando o meu juízo. “Mais um dia, menos um dia”.
Penitenciei-me para o resto da vida. Ou melhor: para o resto do meu caminho em direção à morte. Até porque a culpa é minha. Fui eu quem procurou essa situação. Não tinha nada que provocá-lo.
Acho também que foi o destino que me colocou diante dele. Eu estava no Expresso 300 (Cidade Nova-Centro). Ah, por falar em 300, entre os passageiros, ele é conhecido por esse número não apenas por referência à linha, mas, também, pela quantidade de pessoas que sobe nele a cada deslocamento.
Coisa rara acontecia na viagem. O ônibus estava lotado, mas ninguém queria se sentar ao lado daquele homem. Só eu.
A tranqüilidade desse cidadão não combinava com inquietação que ele carregava. Deveria ter uns cinqüenta anos de idade. Assim que me acomodei ao seu lado descobri o porquê de outros passageiros terem dispensado a sua companhia. Ele exalava o cheiro animal do ser humano, mas dava para suportar.
Mas não foi o cheiro dele que me deixou perturbado. Foram as únicas seis palavras que ele me dirigiu, quando o abordei.
A primeira abordagem foi assim: “Tudo bem, mestre?”. E ele, nada. Fiquei desconcertado porque ele só fez olhar para mim e deu de ombros, com um olhar desdenhador. Depois resolvi encarar as conseqüências das minhas inconseqüências e perguntei-lhe outra coisa: “Mestre, como vai a vida?”
Foi aí que ele soltou a meia dúzia de palavras:
“Mais um dia, menos um dia”.
Na hora representei numericamente o que ele falara: + 1 -1. Depois continuei falando comigo mesmo. “Não, o que ele falou eu posso representar de outra forma”: 1 + 1 = -1. Fiz a terceira operação, partido daquilo ele me falara. Iniciei com o positivo, grafei o negativo e o resultado me levou ao nada, ao nulo, ao inexistente: + 1 – 1 = 0.
Repeti essas operações várias vezes nos últimos cinco anos para hoje chegar a uma conclusão: “Perguntei-lhe da vida e ele me falou da morte”.
Aquele matemático não havia falado nenhuma coisa impossível de se imaginar. Ele mostrou naquela operação simples a profundidade incrível da existência. “Somos seres finitos e temos consciência da morte. De fato, a consciência da morte é uma característica indefinidamente humana e desta forma podemos dizer que os seres humanos são os únicos seres mortais”. Foi isso que li em um filósofo chamado Heidegger. Aportuguesando, lê-se assim: Raideguer.
Se na operação um dia mais um dia o resultado sempre será menos um dia, então, era disso que aquele homem estava falando: a caminho do fim, todo passo à frente representa um passo atrás.
Justo eu, péssimo em matemática, fiquei perturbado com os números.
Quando dei por mim, o 300 já estava começando a ficar vazio. Estávamos na Avenida Constantino Nery. Havíamos passado do estádio Vivaldo Lima e parado em frente ao banco de sangue estadual, Hemoam, ao lado do antigo Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro. E lá ele desceu.
Talvez, lá, um dia, eu desça também.
*Filósofo, estudante de jornalismo e mestrando em Sociedade e Cultura na Amazônia/Ufam.