Ryota Oyama/Amazon Koutakukai
Wilson Nogueira (texto e fotos)
[Atualizada em 18/04/2019 ]
O imigrante japonês Ryota Oyama (1882-1972) herdou também, na narrativa que o nomeia o Pai da juta amazônica , a maledicente versão de ter contrabandeado da Índia as sementes dessa planta.
Foi assim que aprendi na escola em Parintins (AM), quando adolescente: teria ele trazido as sementes escondidas nas bainhas da calça, para driblar a alfândega indiana.
Por isso, em reportagem para o Jornal do Commercio (Manaus – AM), no começo da década de 1980, perguntei a um dos filhos de Oyama, Tamon Oyama, a respeito desse possível ardil, e ele me respondeu secamente: “Meu pai não era contrabandista”.
Durante a entrevista, ele me disse que as remessas de sementes experimentadas no projeto Vila Amazônia passaram pela alfândega indiana oficialmente, e lamentou que se tenha inventado e atribuído um falso episódio aos feitos do seu pai e à história da juta na região.
E cria ele que as pessoas nem se davam conta de que, agindo assim, maculavam os imigrantes com uma prática repugnante na cultura japonesa, enquanto a mesma, no Brasil, não passaria de um lance de elogiável esperteza – o jeitinho brasileiro de se dar bem na vida.
Essa versão é tão comum que podemos encontrá-la na literatura amazonense, como no livro E deus chorou sobre o rio (Valer, 2018 ), da escritora Beth Azize, na passagem que atribui a chegada da juta ao município de Manacapuru (AM) a uma parceria entre japoneses e sírio-libaneses. Trecho da narrativa:
“Os japoneses explicaram tudo a Gabriel. As sementes vieram para o Brasil escondidas na dobra da calça de um japonês, levando para o Médio Amazonas, plantou na zona de várzea, dando uma fibra muito bonita. Parintins era o único lugar que dava a fibra, e agora, os japoneses queriam fazer a experiência em Manacapuru, mas não conheciam ninguém, nem tinham terra. Era o ano de 1937. Domingo pela manhã”.
A monocultura da juta reacendeu a economia da região, principalmente a do Amazonas, paralisada desde a perda da competitividade da borracha nativa amazônica, no final da década de 1910, para a borracha plantada pelos ingleses na Malásia.
O projeto da imigração foi idealizado e desenvolvido por Tsukasa Uetsuka, que obteve do governo amazonense a concessão de um milhão de hectares de terras no município de Parintins, na divisa com o Pará.
Sede do Instituto Amazônia/AK
Os imigrantes japoneses, jovens kotakuseis, iniciaram os testes da adaptação da juta indiana em setembro de 1931, nas terras da hoje Vila Amazônia, no rio Amazonas. Na vila foi instalado o Instituto de Pesquisa da Amazônia, uma extensão da escola de formação dos colonos fundada no Japão pelo próprio Uetsuka, para apoiar o seu projeto com pessoal qualificado e infraestrutura.
Mas até 1934 os kotakuseis só acumulavam fracassos, porque as sementes só geravam pés de um metro e meio a um metro e oitenta, ao posso que, nas terras indianas, cresciam até quatro metros.
Quando Uetsuka visitou a Vila Amazônia, em outubro de 1934, foi surpreendido por Ryota Oyama, que havia selecionado, no campo experimental da Colônia do rio Andirá, sementes de pés que chegaram até aos quatro metros e oitenta centímetros de altura.
Era tudo que Uetsuka queria ouvir, uma vez que a sua viagem tinha como objetivo injetar ânimo nos patrícios que já ensaiavam retornar ao Japão ou trocar a Amazônia por outras regiões brasileiras. A descoberta de Oyama daria início, três anos depois, ao ciclo econômico da juta amazônica, que se estenderia com vigor até a década de 1970.
O Brasil importava fibra de juta da Índia para ensacar cereais, principalmente café, para exportação. Em 1937, o país comprou 37, 5 toneladas de juta indiana. Dez anos depois, as sementes de Oyama já haviam tornado o Brasil autossuficiente na produção dessa fibra.
O trabalho de Oyama foi reconhecido não só por seus conterrâneos como pelas autoridades brasileiras. Em vida e in memoriam recebeu homenagens públicas com a deferência de “pai da juta amazônica”, porém, ainda é persistente a pecha de que ele contrabandeou as sementes da Índia.
Literatura
Hoje há uma razoável literatura disponível sobre a imigração japonesa na Amazônia, tanto de pesquisadores brasileiros quanto de japoneses. O que se percebe, mesmo numa espiadela, é que o contrabando de sementes atribuído a Oyama é falso – uma fake news , que se transformou em lenda.
Detalhe da capa do livro A Saga dos koutakuseis na Amazônia
No registro de Uetsuka sobre a história do cultivo da juta no Amazonas, publicado no livro A saga dos koutakuseis no Amazonas (Amazon Koutakukai, Manaus, 2011), a primeiro plantio na Vila Amazônia deu-se com sementes indianas adquiridas no Japão e em São Paulo pelo próprio Uetsuka.
Seguiram-se outras tentativas, em razão da inviabilidade econômica das fibras obtidas, sempre com sementes indianas enviadas por ele a partir da matriz do empreendimento no Japão. Os seguidos fracassos abalaram, mas não levaram Uetsuka à desistência.
Em 1933, ele enviou ao território indiano um especialista em agricultura, Isaku Kino, professor da Alta Escola de Colonização para a Índia, para estudar tudo o que fosse necessário sobre o cultivo e industrialização da juta.
Em agosto desse mesmo ano, segundo o relato de Uetsuka, Kino retornou ao Japão e foi enviado, imediatamente, ao Amazonas com sementes adquiridas em Calcutá, as quais foram plantadas em terras da Colônia Modelo do Andirá. Novamente os resultados não foram satisfatórios, e foi então que o próprio Uetsuka decidiu vir ao Brasil trazer ânimo aos seus conterrâneos.
[…] encontrei uma colônia inteira cheia de desespero, de forma que dirigi algumas palavras aos colonos a fim de dar-lhe alento e reacender novas esperanças. Quando saí da plataforma, depois do meu discurso, um dos colonos chamado Ryota Oyama se dirigiu a mim mostrando uns poucos grãos de sementes na palma da mão dizendo: “Descobri dois pés de muito diferente dos planta no meu campo de juta (sic )”, diz o relato de Uetsuka.
Gôto Tsutsumi, em texto publicado no livro Pioneiros da imigração (União Nikkei – São Paulo, 2017. Col. Cultura japonensa – Vol. 8), esclarece que “[…] várias pessoas contribuíram com o cultivo da juta no Amazonas”, e destaca o empenho de Kotaro Tsuji nessa empreitada.
Tsuji, por indicação da Escola Superior do Comercio de Kobe, onde se formou em 1927, partiu para o Brasil em viagem de pesquisa científica promovida pelo Ministério da Cultura do Japão. Em São Paulo, ele tomou conhecimento de que a juta indiana ali plantada não se desenvolvia com qualidade competitiva. Na Amazônia, na área de Igarapé Açu (PA), notou que a malva, o linho paraense, crescia com abundância. Então registrou:
“A produção de juta na Amazônia reúne condições suficientes para ser bem-sucedida por causa do calor e da chuva disponível. A terra é barata e o transporte fluvial disponível. Pela proximidade com os grandes mercados da Europa, da América e do Brasil, creio que a juta é um produto promissor”.
De volta ao Japão, Tsuji foi convidado por Uetsuka para lecionar na recém-escola Superior de Colonização Kokushikan, onde viriam a ser formados os kotakuseis enviados à Amazônia. Tsutsumi afirma então que, juntos, eles deram os primeiros passos para a produção de juta no vale amazônico.
Não há registro confiável, portanto, de que Oyama esteve na Índia em busca de sementes de juta. Consta, sim, que ele foi o responsável pela seleção das mudas que se destacaram entre as que havia plantado em seu roçado. A ele não pode e nem deve ser atribuída a condição de contrabandista ou ladrão de sementes de juta, o que hoje se convencionou chamar de biopirataria.
Então, o que poderia estar por trás dessa fake news que se tornou lenda? O contexto em que ela se dissemina é o da Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil aderiu aos países Aliados encabeçados pelos Estados Unidos para combater os países liderados pela Alemanha hitlerista, entre os quais o Japão.
O Brasil fez propaganda oficial e oficiosa contra os inimigos. Assim, os imigrantes vindos dos países das fileiras de Adolf Hitler eram demonizados, acusados de espionagem, agredidos e até mortos. Lembro-me que, em Parintins, corria a boataria de que os japoneses da Vila Amazônia possuíam armas e infraestrutura de guerra.
Eles esconderiam uma central de rádio, pela qual seus líderes se comunicavam diretamente com os comandos japoneses da guerra; um túnel de fuga que atravessa a terra até ao Japão; uma bomba que poderia destruir várias cidades etc.
Mas o que apavorava mesmo, principalmente a criançada, era um possível envenenamento das caixas d`água da cidade, pois tal fato já teria ocorrido em outras partes do mundo.
Esse estado de medo e desconfiança dos estranhos moradores da Vila Amazônia ganha ainda mais força com a decisão do governo brasileiro de embarcá-los em um navio, em 1942, e concentrá-los em Acará (hoje Tomé Açu-PA), um campo de liberdade vigiada e controlada.
Quem não morava na vila teve que se embrenhar nas matas e rios para não ser escorraçado por parte da população envenenada pelo ódio da propaganda de guerra.
Acossado pela fome, pois seus filhos já apresentavam desnutrição, Zennoshin Shoji saiu do seu refúgio e se deslocou até a cidade de Barreirinha (AM) para comprar alimentos, e lá foi preso e torturado com chibatadas acusado ser espião de de Hitler.
Não seria forçoso inferir que, por trás da demonização, do atiçamento do ódio, xenofobia e da perseguição aos imigrantes japoneses, também estariam setores das elites econômicas e políticas locais e regionais, que se sentiram ameaçados em sua hegemonia pela nova economia da fibra.
Todo patrimônio dos koutakusseis foi confiscado pelo governo brasileiro como espólio de guerra e repassada à empresa J.G de Araújo, por intermédio de leilão.
Guerra das sementes
Quanto ao então persistente insucesso das sementes da juta asiática em solo amazônico, há uma teoria que dá substância a uma possível sabotagem dos indianos, segundo enfatizam Alfredo Kingo Oyama Homma, Neto de Ryota Oyama, e Aldenor da Silva Ferreira em artigo publicado no livro Imigração japonese na Amazônia – contribuição na agricultura e vinculo com o desenvolvimento regional (Edua, 2011). Eles teriam fornecido, deliberadamente, sementes de péssima qualidade aos japoneses, para se prevenir de uma iminente competição no mercado mundial.
A essa altura já era do conhecimento do mundo que o Brasil havia perdido a hegemonia da produção de borracha para a Malásia, então possessão britânica. Setenta mil sementes de seringueiras foram embarcadas em 1876, em Santarém (PA), para Londres, pelo britânico Henry Wickham, depois transplantadas para Malásia.
Ainda hoje persiste a polêmica se Sir Henry Wickham contrabandeou as sementes, se contou com a conivência das autoridades brasileiras ou se estava amparado por leis internacionais da época.
É certo, todavia, que a domesticação da seringueira e do quinino estava a cargo de funcionários britânicos do Ministério da Índia, o que reforça que a então colônia britânica conhecia os riscos econômicos que corria com o projeto japonês de produzir juta na Amazônia.
Esse contexto também corrobora com o fato de que Ryota Oyama é vítima de uma trama sórdida, típica das épocas sombrias, que visava, certamente, atingir os koutakuseis por intermédio do símbolo de um empreendimento que soergueu a economia do Amazonas.
Longe da pecha de contrabandista, Ryota Oyama foi um pesquisador empírico atento e persistente. Mas, infelizmente, os fantasmas do submundo da história também agem com tenacidade.