Meu pai já estava dormindo. Ainda era por volta das 8 da noite, cedo pra nós, da cidade, tarde pra quem vive no meio do mato, no interior da Amazônia.
Muito mais tarde ainda no caso do meu pai, que não tinha luz elétrica e que, por causa disso, costumava se recolher assim que o sol desaparecia na mata.
Tempos atrás (ele não sabe quanto tempo), papai havia lido que ferrada de lacrau (lacraia), mata.
Pois, naquelas altas horas da madrugada, papai acordou sentindo uma dor incômoda na costa do pé esquerdo.
Então, da cama mesmo, ele se virou pra baixo, puxou do assoalho a lanterna e focou para o pé dolorido.
Na hora ele viu a razão da dor: um inchaço com dois furinhos avermelhados.
Na hora, veio-lhe à memória a lembrança sobre os lacraus. Assim passou a fazer uma varredura com a lanterna e não demora pra o autor do ataque no pé dele aparecer.
Velório
Não era simplesmente um lacrau. Era um lacrau enorme. Mais de um palmo, um dado que lhe fez imaginar sobre uma mesa, dentro de um caixão, com flores lhe cobrindo e algodão nas narinas que, só de imaginar, já lhe tirava a respiração.
Papai imaginou também a viúva chorando, de um lado, e, de outro, um homem sorrindo pra mamãe.
Meu pai não conteve a imaginação. Tratou de falar com a mamãe, que já estava acordada, ao seu lado. E lhe perguntou:
– Valda, me responde uma coisa. Se eu morresse hoje, tu arranjaria outro homem.
Mamãe não pensou duas vezes:
– Que conversa é essa, Aguinaldo? Claro que eu arranjaria. Eu ainda sou nova.
Na hora, a dor da ferrada de lacrau desapareceu. Assim sendo, até hoje, o papai recomenda tratamento à base de susto pra ferrada de bichos peçonhentos.
*O autor é escritor, diretor-presidente do BNC Amazonas
Arte: Gilmal