Aldenor Ferreira*
Passar fome é uma humilhação, mas passar fome em um país que se autointitula o celeiro do mundo é uma perversidade, um flagelo.
Em 1993, estava iniciando minha jornada no Ensino Médio. Naqueles dias, deparei-me com um livro intitulado “A fome: crise ou escândalo?”, escrito pelo geógrafo brasileiro Melhem Adas.
Nesse texto, Adas apresenta e discute, com números, a questão da fome no mundo, definindo-a conceitualmente e analisando questões estruturais que estão por detrás dessa situação que ele mesmo define como “uma vergonha para a humanidade”.
Interessante é que a primeira edição do livro é de 1988, mas o tema continua atual. A fome no Brasil hoje, pegando o gancho do subtítulo do livro de Adas, é um escândalo e passa ao largo de qualquer relação com a quantidade de alimentos produzidos anualmente.
No governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pela primeira vez, ousou-se encarar o problema da fome por meio de um programa institucionalizado, integrado e específico de erradicação deste flagelo no país.
Isso é um dado de realidade, materializado na vida das pessoas que foram beneficiadas pelo programa Fome Zero.
Mesmo tendo estabelecido ações emergenciais de combate à fome, distribuindo alimentos – afinal, quem tem fome tem pressa –, as diretrizes do programa estavam voltadas para a construção de políticas estruturais globais e perenes em diversas frentes.
À guisa de exemplo, no âmbito da reforma agrária foram pensados: um plano nacional, um plano emergencial de assentamento de famílias acampadas e a recuperação de assentamentos em situação precária.
Avançou-se no fortalecimento da agricultura familiar, na ampliação do crédito rural para esses agricultores e, fundamentalmente, na compra antecipada da produção.
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) fizeram a triangulação entre governo, agricultura familiar e consumidores, fomentando a segurança alimentar no campo e na cidade.
Ademais, investiu-se ainda na ampliação do acesso e da qualidade da educação do campo, bem como na alfabetização de jovens adultos, no financiamento para habitação e saneamento para famílias de baixa renda, além de programas de expansão do microcrédito, do primeiro emprego e do incentivo ao turismo rural.
Como dito, naquela época, a fome, pela primeira vez na história do Brasil, foi tratada de forma global e institucionalizada. Acima de tudo, o programa Fome Zero se preocupou em dar segurança alimentar e nutricional aos brasileiros de maneira contínua.
Isso é deveras importante, pois há uma diferenciação da fome, apontada por especialistas em nutrição: a fome global e a fome parcial.
No caso da fome global, citada por Adas, trata-se de uma fome energética. Noutras palavras, há a incapacidade de os alimentos ingeridos diariamente fornecerem as calorias necessárias para suprir os gastos energéticos realizados pelo próprio organismo.
Portanto, não basta apenas comer qualquer coisa. É preciso que os alimentos ingeridos possuam as qualidades proteicas necessárias para o fornecimento de energia ao corpo, ou seja, a alimentação tem que ser de qualidade.
Já a fome parcial, segundo o mesmo autor, está ligada à falta prolongada de substâncias importantíssimas para o corpo, como proteínas, vitaminas e sais minerais, essenciais para a manutenção da função celular e para a restauração dos tecidos e dos órgãos.
Assim, para além das discussões político-partidárias e político-ideológicas sobre o governo Lula, há um fato inconteste no Brasil que se impõe historicamente: em 2014 o país saiu do mapa da fome, elaborado pela ONU.
Todavia, para a tristeza de muitos e a alegria de poucos, voltamos a esse mapa em 2020. De acordo com a Rede Penssan, hoje, “a insegurança alimentar grave – ou seja, a fome – atinge 9% da população”.
Ainda segundo o levantamento, “os resultados evidenciam que, em 2020, a insegurança alimentar e a fome no Brasil retornaram aos patamares próximos aos de 2004”, ano em que, registre-se, o programa Fome Zero havia completado seu primeiro aniversário.
Agora, o Brasil volta a viver o drama da fome global e parcial, que fazem parte novamente da realidade de cerca de 19,3 milhões de brasileiros.
Na terra onde o agro é pop, é tech, é tudo, que produz, portanto, alimentos em excedente, isso é um flagelo, uma perversidade.
A fome não pode continuar. É preciso o retorno urgente do programa Fome Zero e de todas as políticas a ele associadas.
*Sociólogo
Foto: Roberto Parizotti/FotosPúblicas/São Paulo, SP. 16 de abril de 2021