Rios de sangue no litoral paulista
"Nรฃo รฉ correto, nรฃo รฉ justo atribuir apenas ao fenรดmeno natural das chuvas a causa da tragรฉdia de Sรฃo Sebastiรฃo"

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*
Publicado em: 04/03/2023 ร s 07:18 | Atualizado em: 07/03/2023 ร s 12:09
O carnaval deste ano em Sรฃo Sebastiรฃo, litoral norte de Sรฃo Paulo, foi marcado pela tragรฉdia. As chuvas intensas e a falta de polรญticas pรบblicas de prevenรงรฃo e manutenรงรฃo das encostas provocaram deslizamento de terras e muitas pessoas perderam a vida.
Infelizmente, trata-se de algo recorrente nรฃo apenas em Sรฃo Paulo, mas no Rio de Janeiro e em outros estados brasileiros. Contudo, para alรฉm da discussรฃo sobre as fortes chuvas como o fator principal dessa tragรฉdia, รฉ preciso saber quem eram essas pessoas, cujo fim trรกgico despertou a comoรงรฃo e a solidariedade de muitos brasileiros.
A maioria das pessoas que fizeram suas casas nas encostas de Sรฃo Sebastiรฃo sรฃo trabalhadoras, migrantes, pobres, pretas e pardas. ร gente que vende a sua forรงa de trabalho em troca de um mรญsero salรกrio nas รกreas onde a burguesia paulista e paulistana costuma ir aos finais de semana para relaxar.
Com efeito, o litoral paulista รฉ um lugar caro. O custo de vida รฉ elevado, nรฃo sendo possรญvel para a classe trabalhadora a aquisiรงรฃo de uma boa casa em frente ร praia. Os melhores terrenos jรก estรฃo ocupados pela fina flor da elite paulista e suas mansรตes ร beira-mar. Ademais, a vida da classe trabalhadora no litoral paulista รฉ de faina exaustiva. Por lรก, na maioria das vezes, quem se diverte sรฃo os outros โoutrosโ.ย
ร importante destacarmos que, no Brasil, praia sempre foi o lugar de morada de pescadores, extrativistas, indรญgenas. Enfim, de pessoas pobres e alijadas do processo de desenvolvimento social. A urbanizaรงรฃo acelerada, junto ร especulaรงรฃo imobiliรกria sempre crescente, que tornou as praias um lugar quase que exclusivo de gente endinheirada, nรฃo รฉ um fenรดmeno antigo.ย
Estudo
Sobre esse tema, o pesquisador Luiz Farias, em sua tese de doutorado intitulada Mobilidade populacional e produรงรฃo do espaรงo urbano na Baixada Santista: um olhar sociodemogrรกfico sobre sua trajetรณria nos รบltimos 20 anos, aponta que o processo mais intenso de especulaรงรฃo dessa e de outras regiรตes do litoral paulista data dos anos 2000. Destaca-se que essa exploraรงรฃo esteve sempre amparada por legislaรงรตes urbanas municipais elitistas voltadas a atender os interesses do mercado imobiliรกrio.
Nesse sentido, de acordo com Farias, dados mostram uma โelitizaรงรฃo do processo de ocupaรงรฃo do litoral norte (orla de Guarujรก e Bertioga) e mesmo do litoral sul (como Praia Grande)โ. Nessas cidades, ele afirma que โboa parte da ocupaรงรฃo estรก ligada ร migraรงรฃo intrametropolitana das classes mรฉdias e elites locais de Santosโ.
A verdade รฉ que nas รบltimas trรชs dรฉcadas houve, em todo o litoral paulista, um processo de โcercamento dos terrenosโ. Houve expulsรฃo de pessoas com menor poder aquisitivo das melhores localizaรงรตes. Essas, segundo Farias, foram utilizadas para a construรงรฃo de โdomicรญlios de uso ocasional, tais como: segunda residรชncia, veraneio, aluguel por temporada etc. Sรฃo localizaรงรตes que concentram as infraestruturas urbanas, oportunidades de emprego e ofertas de serviรงos e de lazerโ.
Diante do exposto, surge uma pergunta: onde moram ou onde irรฃo morar os trabalhadores das cidades litorรขneas paulistas, do Rio de Janeiro ou de outra cidade brasileira? Do ponto de vista deles, a resposta รฉ simples: โiremos morar onde for possรญvelโ, fato que, irremediavelmente, os joga para cima das encostas.
Nesse รขmbito, cabe lembrar e destacar o quanto as formas de ocupaรงรฃo das terras, quer seja no campo ou na cidade, nรฃo mudam em nosso paรญs. A histรณria mostra que empurrar a classe trabalhadora para as encostas รฉ algo bem antigo nesta terra invadida por Cabral e sua trupe em 1500.ย
Lei de Terras
Por exemplo, se fizermos um recuo no tempo, nos depararemos com a famigerada Lei de Terras de 1850 que instituiu, pela primeira vez no paรญs, a posse privada da terra. A princรญpio, qualquer brasileiro poderia se tornar um proprietรกrio de terras, desde que tivesse recursos financeiros para comprรก-las da Coroa.
Mais tarde, com a aboliรงรฃo da escravidรฃo, ocorrida em 1888, essa lei ajudou a colocar milhรตes de trabalhadores negros na indigรชncia. Naquele momento, com os melhores terrenos do litoral jรก ocupados, restaram os manguezais, as encostas e os pรขntanos como local de habitaรงรฃo, fundamentalmente em cidades portuรกrias. Afinal, a รบnica atividade que muitos conseguiam desenvolver era o carregamento e o descarregamentos de navios.
Sonho de moraria
Caro(a) leitor(a), moradia digna para a classe trabalhadora sempre foi um sonho quase impossรญvel nรฃo apenas no litoral paulista, mas no Brasil de forma geral. A Histรณria, a Geografia e a Demografia nos provam isso, alรฉm de indicarem caminhos e soluรงรตes. Nesse sentido, nรฃo รฉ correto, nรฃo รฉ justo atribuir apenas ao fenรดmeno natural das chuvas a causa da tragรฉdia de Sรฃo Sebastiรฃo.
Afinal, morrer soterrado nรฃo foi o destino trรกgico e exclusivo dos trabalhadores de Sรฃo Sebastiรฃo. Em 2022, a falta de estrutura para um grande volume de chuvas causou a morte de 240 pessoas, deixando ainda 600 desabrigadas em Petrรณpolis, Rio de Janeiro.
Tragรฉdias como essas, apesar de serem rapidamente esquecidas por aqueles que nรฃo foram por ela diretamente vitimizados, podem ser evitadas ou, no limite, mitigadas. Mas, para que isso ocorra, alรฉm dos investimentos necessรกrios em infraestrutura, รฉ preciso que se remova tambรฉm a cultura da segregaรงรฃo socioespacial no Brasil, cujo pano de fundo รฉ o racismo e o รณdio de classe.
Os rios de sangue que descem todos os anos dos morros das cidades brasileiras podem e devem ser represados. Trata-se de uma questรฃo de justiรงa social e, acima de tudo, de promoรงรฃo da igualdade รฉtnico-racial. Afinal, atรฉ quando vamos correr riscos que poderiam ser evitados?
*Sociรณlogo
Foto: Divulgaรงรฃo/Prefeitura de Sรฃo Sebastiรฃo