Quem rouba quem na cobiça das sementes?
"Ato jogou a economia amazonense em um vácuo de, ao menos, 30 anos"

Wilson Nogueira, especial para o BNC Amazonas
Publicado em: 20/01/2024 às 08:00 | Atualizado em: 20/01/2024 às 11:11
Os brasileiros não esquecem nem perdoam os ingleses pelo “roubo das sementes de seringueiras” amazônicas, episódio que tirou Brasil do topo da produção do látex silvestre, lá por volta de 1907.
Esse ato jogou a economia amazonense em um vácuo de, ao menos, 30 anos.
Porém, poucos sabem que o Brasil surrupiou sementes e mudas de café da Guiana Francesa, em 1727, e se tornou o maior exportador do produto na entrada do século 18.
O governo Vargas (1930-1945), por sua vez, difundiu, inclusive nas escolas, a versão de que a juta que tirou a economia amazonense do sufoco econômico foi trazida da Índia, clandestinamente, por Ryota Oyama, conhecido como “pai da juta amazônica”.
Esses são os casos mais rumorosos de biopirataria, quando esse termo ainda não era usado, envolvendo o Brasil como vítima e vilão, em razão da importância econômica desses produtos estratégicos para a economia internacional em suas respectivas épocas.
Os pés de café adaptados na Guiana Francesa, na fronteira norte do Brasil, também eram fundamentais para a economia de Caiena e fizeram fama nos elegantes e românticos cafés parisienses.
Todavia, o arbusto já era resultado de biopirataria: havia sido descoberto por pastores iemenitas, no século 6 d.C, e depois disseminados para outras regiões do mundo a partir da Turquia.
A versão corrente é a de que o Brasil agiu, deliberadamente, para piratear as sementes e mudas do enclave francês, porque não era possível obtê-las de forma legal.
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Cafezinho
Sargento biopirata
A missão de biopiratear coube ao sargento do Maranhão e Grão-Pará Francisco de Melo Palheta, designado em 1727, pelo governador João da Maia Gama, chefe de uma missão na fronteira do Brasil com a Guiana Francesa.
Sua missão oficial era resolver uma disputa territorial entre portugueses e franceses. Mas, secretamente, ao militar, também por ordem do governador, foi lhe atribuída a tarefa de traficar sementes e mudas de café para o Brasil.
Em versão aventuresca, Palheta conquistou a simpatia do madame d´Orvilliers, mulher do governador da Guina Francesa, Claude d´Orvillers, e obteve a conivência dela para colocar em sua bagagem mil semente e quatro mudas de cafeeiros.
Hoje, historiadores acreditam mais na versão de que Palheta cumpriu a sua missão por meio de algum produtor subornado, porque a França havia proibido a venda de sementes de café com potencial de germinação aos portugueses.
Café protagonista
Inicialmente, a cultura do café foi desenvolvida nas terras do Maranhão e Grão Para, mas ainda sem relevância econômica para o país.
O produto só conquistou protagonismo na exportação brasileira no começo do século 19, quando a cultura já havia se espalhado por terras do Sudeste.
Malásia sobe, Amazonas cai
No caso da borracha, a autoria da biopirataria é atribuída ao botânico (disfarçado) inglês Sir. Henry Wickham, que obteve sementes em seringais dos rios Madeira e Tapajós e as embarcou para o Garden Kew de Londres, onde foram realizados testes de adaptação aos ecossistemas asiáticos.
Da Inglaterra, mudas da planta foram levadas para a Malásia, colônia britânica entre o século 18 e meado do Século 19, onde vieram a ser cultivadas de forma adequada a uma extração mais barata, em comparação à realizada na selva amazônica.
Em 1930, o país asiático já produzia metade da produção demandada em nível mundial.
Enquanto isso, os seringais da Amazônia viviam os estertores da crise profunda.
A abundância da matéria prima derrubou o seu valor no mercado mundial e inviabilizou a competividade dos seringais amazônicos.
O ciclo econômico da borracha amazônica se estendeu de 1888 a 1910, o período exclusivo de atendimento à demanda mundial.
Sir Walkman sustentou que aquiriu as sementes de forma legal e que as autoridades brasileiras conheciam o conteúdo da remessa ao Garden Kew. Nada menos que 70 mil unidades.
O inglês deu a entender que seringalistas e funcionários da aduana brasileira foram coniventes com a sua ação, o que não é difícil de imaginar que seja verdade.
Assim como não é difícil constatar que o dinheiro advindo da borracha foi mal aplicado no bem-estar das populações amazônicas, uma vez que fora carreado para desenvolver outras regiões.
O historiador amazonense Antônio Loureiro afirma que 25% da produção dos seringais eram confiscados pelo governo federal, por meio de impostos extorsivos.
Isso possibilitou, inclusive, o amparo estatal à produção cafeeira do Sudeste.
Ryota Oyama, por sua vez, sempre rechaçou a versão de que trouxera sementes de juta indiana na bainha da calça, conforme era ensinado até nas escolas.
O objetivo da falsa notícia, atividade da máquina de propaganda de guerra, era difamar os japoneses, os amarelos, que apoiaram os países liderados pela Alemanha na Segunda Guerra Mundial (1940-1945).
Os japoneses e a juta
Essas sementes passaram pela alfândega indiana e foram experimentadas por ele na colônia japonesa do rio Andirá, das quais obtiveram três mudas com potencial comercial.
Desses três pés surgiu a juta amazônica, que recuperou o fôlego da economia amazonense pós-borracha, e só saiu de cena com a fabricação de sacos para embalar grãos, entre os quais os de café, com fios sintéticos.
É digno de registro, por fim, que o roubo de sementes sempre esteve no radar dos europeus, sem oferecer contrapartidas aos povos que, primeiramente, desenvolveram essas culturas: aqui, o café, descoberto e manipulado pelo iemenitas, e a borracha, há séculos transformadas em utensílios domésticos pelos indígenas amazônicos.
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Literatura consultada
LOUREIRO, Antonio. A grande crise. 2.ª Ed. Manaus: Valer, 2008
LIMA, Claudio de Araújo. Coronel e Barranco. 3.ª Ed. Manaus: Valer, 2019.
CONDAMINE, Charles-Marie de La. Viagem pelo Amazonas (1735-1745). São Paulo: Nova Fronteira, S/D.
Ministério da Agricultura e Pesca, em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias/conheca-a-historia-do-cafe-no-mundo-e-como-o-brasil-se-tornou-o-maior-produtor-e-exportador-da-bebida.
Foto: divulgação