Em março de 2021, escrevi a primeira parte deste texto para o BNC . Naquela oportunidade, fiz referência à crueldade e à falta de empatia de parte da sociedade nacional diante da morte de 262.770 brasileiros, causadas pela Covid-19. Eu não imaginava que esse tópico voltaria a esta coluna pouco mais de um ano depois.
Retomo esta semana o tema da perversidade brasileira para fechar a série de textos sobre as mortes cruéis e covardes de Bruno Pereira e Dom Phillips. A referência ao desinteresse da população em relação à morte alheia, pois a perversidade diante do assassinato dos ativistas segue igual, vejamos.
No texto “A Elite do Atraso” (2017), Jessé Souza, ao revisitar Gilberto Freire e retirar de suas obras aspectos importantes para a compreensão da formação social e psicológica da sociedade brasileira, brinda-nos com uma síntese sofisticada acerca de como a sociedade brasileira possui uma raiz cultural sádica.
Jessé afirma que é “precisamente como uma sociedade constitutiva e estruturalmente sadomasoquista – no sentido de uma patologia social específica, onde a dor alheia, o não reconhecimento da alteridade e a perversão do prazer transformam-se em objetivo máximo das relações interpessoais – que Gilberto Freyre interpreta a semente essencial da formação brasileira”.
Essa “semente essencial” é o sadomasoquismo e a malvadeza, traços psicológicos cruéis do povo que habita este lugar chamado Brasil. No decorrer de mais de 300 anos de escravidão, a sociabilidade nacional foi erigida em bases violentas, nas quais a perversidade e a crueldade deram o tom.
Esse sadismo, então, aponta Jessé, foi muito bem percebido por Freyre em “Casa Grande e Senzala”. Nessa obra, é citado o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis: “não há brasileiro de classe mais elevada, mesmo depois de nascido e criado, depois de oficialmente abolida a escravidão, que não se sinta aparentado do menino Brás Cubas na malvadez e no gosto de judiar com negros. Aquele mórbido deleite em ser mau com os inferiores e com os animais é bem nosso: é de todo o menino brasileiro atingido pela influência do sistema escravocrata”.
Em outra passagem desse mesmo romance vemos a seguinte situação:
“[…] um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher de doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer a minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava-lhe mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, – algumas vezes gemendo, – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um – “ai, nhonhô!” – ao que eu retorquia: – “Cala a boca, besta!” .
Esses excertos dizem muito a respeito da constituição dos traços sociopsicológicos da sociedade brasileira, do seu comportamento e da sua abordagem diante da dor alheia. Trata-se de cores sombrias, de músicas cujo tom é sempre dado pela perversidade.
Assim como ocorreu com os mortos por Covid-19 em 2021, quando o presidente da república nos mandou “engolir o choro” e “parar de mimimi e de frescura”, na ocasião das mortes de Bruno e Dom, ele voltou a ter o mesmo comportamento desprezível, colocando a culpa do assassinato nas próprias vítimas. Seus seguidores lobotomizados chegaram a comemorar nas redes sociais o fim trágico dos ativistas.
De fato, há setores perversos dentro desta sociedade de herança escravocrata, cujo maior representante é o presidente da república. Ele é o arauto de uma elite cruel e covarde, um povo sanguinário, indiferente às perdas e ao sofrimento de outrem. A personalidade dessa horda foi forjada em um ambiente idêntico ao do menino Brás Cubas e de seu pai condescendente, que se divertiam fazendo o menino Prudêncio de cavalo disciplinado com açoites.
Como escrito em 2021, reafirmo: esse povo é mau, sua gênese é má e suas sementes serão más. Eles correm o perigo de morrer sem as suas doses diárias de sadismo e, ainda que dependam da morte ou do sofrimento dos outros para exercitar sua frieza, ela não os interessa.
*Sociólogo