Hoje, ao comemorar o centésimo texto publicado nesta coluna, falarei das diferenças lógicas e ontológicas entre o público que lotou a Praça dos Três Poderes, em Brasília, no dia 1º de janeiro , e o que por lá compareceu no domingo passado.
No primeiro dia do ano, Brasília foi tomada por milhares de pessoas que faziam uso à vontade da cor vermelha. Com isso, uma espécie de jardim de rosas vermelhas surgiu em frente ao Palácio do Planalto – após quatro anos de “inverno escuro e frio”, a posse de Lula representou a chegada da primavera à capital federal e ao restante do Brasil.
A Praça dos Três Poderes é um espaço que foi genialmente arquitetado por Oscar Niemeyer e Lucio Costa, materializando o Espírito das Leis de Montesquieu e o seu princípio de separação, independência e harmonia entre poderes. Lá, no primeiro dia de 2023, reuniram-se democratas de diversas partes do Brasil, com único intuito de celebrar o triunfo da vontade popular materializada na vitória de Lula.
A festa foi linda!
A diversidade brasileira foi ali representada de forma singular, com muita criatividade e originalidade. O discurso do presidente Lula, como indiquei no texto da semana passada, apontava para o início da realização de sonhos antigos do presidente e da maior parte da população brasileira: um Brasil mais justo, democrático, inclusivo e solidário.
Ademais, cada pessoa que viajou para Brasília naquele dia, enfrentando, muitas vezes, vinte e quatro horas de viagem, tinha em mente apenas celebrar a vitória da democracia e, com ela, a vitória da liberdade e da vida, no sentido amplo da palavra.
De forma diametralmente oposta, o público que compareceu à Praça dos Três Poderes no dia 8 de janeiro só tinha uma coisa em mente: a destruição da democracia. É fácil assinalar, a partir dos objetivos dos atos realizados em Brasília, que a natureza do ser de uma parcela considerável da população brasileira foi corrompida de maneira irreversível. Trata-se, portanto, de uma diferença lógica e, acima de tudo, ontológica.
Para a nossa tristeza, temos hoje no Brasil um problema gravíssimo, de natureza psicossocial. Uma situação com potencial de nos empurrar para um estado de anomia social. O próprio líder dos fanáticos de Brasília, o ex-presidente da república, claramente tem problemas psicológicos e o quadro que conseguimos visualizar agora foi construído a partir daquilo que chamamos de pós-verdade, conceito consagrado pelo cientista político Ignas Kalpokas no livro A Teoria Política da Pós-Verdade .
Não há espaço, aqui, para discutirmos com mais detalhes o conteúdo do livro de Kalpokas. De todo modo, uma questão interessante que ele aborda é o fato de que a pós-verdade passa longe de ser uma construção irracional, de algo que se consolida devido à ignorância das pessoas e à falta de estudos ou de perícia ao manejar as mídias e tecnologias, pelo contrário.
A pós-verdade é algo deliberadamente produzido com muita sofisticação e racionalidade. A concordância e a adesão às teorias da conspiração, fake news e falsos acontecimentos, segundo Kalpokas, ocorre pela criação de “atalhos emocionais” e pela aceitação de “verdades afetivas”.
Kalpokas afirma, ainda, que a pós-verdade é uma condição de nosso tempo, o que implica dizer que o fenômeno que temos visto no Brasil, fundamentalmente a partir de 2018, não é algo isolado e pertencente apenas à realidade brasileira, mas, sim, de vários países, inclusive dos mais desenvolvidos e democráticos.
Particularmente, concebo a pós-verdade como uma degeneração do ser social , logo, uma questão ontológica, como mencionado. De todo modo, não sou alarmista nesse tema. Não creio que isso possa destruir a civilização ocidental, desde que tomadas as devidas providências em todos os segmentos sociais, fundamentalmente na educação, na política, no direito e nas legislações. O “mar de gente vermelha”, presente na Praça dos Três Poderes no dia 1º de janeiro, me impulsiona a acreditar que uma outra sociedade é possível.
Paradoxalmente, no intervalo de apenas uma semana foi possível ver na Praça dos Três Poderes manifestações de amor, de esperança, de verdadeiro patriotismo, de paz, de fé no futuro grandioso do Brasil. Infelizmente, em um intervalo de sete dias, também, foi possível ver o oposto disso tudo. A manifestação da extrema-direita nazifascista do domingo não foi legítima, democrática, patriótica. Pelo contrário, foi uma manifestação golpista.
O desejo deles, ao atacar e destruir todos os prédios e símbolos dos poderes da República é, no limite, acabar com o Estado Democrático de Direito. A luta dessa horda é pela instituição e regulamentação do neoescravismo no Brasil, bem como pelo aprofundamento da segregação social e racial no país. É o desejo de utilizar livremente marcadores sociais de classe, cor, gênero e religião como forma de distinção social.
A lógica dos fanáticos de Brasília é, portanto, ontologicamente oposta à lógica do povo que coloriu de vermelho a Praça dos Três Poderes no dia 1º de janeiro. Nós pintamos aquela praça com as cores do amor e da esperança. Eles, por sua vez, a pitaram com as cores da vergonha.
O autor é sociólogo.
Foto: BNC