Aldenor Ferreira*
Conforme assinalado no texto da semana passada , a Lei n.º 601, promulgada em 18 de setembro de 1850, criou uma estrutura fundiária perversa, cujos desdobramentos se fazem sentir ainda hoje. O principal deles, como argumentei, é a desigualdade social.
Dando sequência à análise da lei e do contexto em que ela foi promulgada, destaco hoje alguns desdobramentos e contradições desse processo, que perpassam claramente a exclusão dos trabalhadores negros libertos a partir da Lei Áurea de 1888.
Conforme registrado por João Pedro Stedile no texto A questão agrária no Brasil: o debate tradicional – 1500-1960 , com a Lei Áurea de 1888, “quase dois milhões de adultos ex-escravos saem das fazendas, das senzalas, abandonando o trabalho agrícola, e se dirigem para as cidades, em busca de alguma alternativa de sobrevivência”.
Com a crise do modelo agroexportador, a elite agrária brasileira buscou uma solução sui generis . Desprezando essa massa de trabalhadores libertos e disponíveis, investindo pesadamente na imigração de trabalhadores europeus, fundamentalmente alemães, italianos e espanhóis.
Ainda conforme Stedile, “com a promessa de terra fértil e barata, foram atraídos para o Brasil, no período de 1875-1914, mais de 1,6 milhão de camponeses pobres da Europa”.
Dentre os vários fatores que podem explicar essa ação, certamente está o racismo, disfarçado de ciência. Noutras palavras, a eugenia, vivida com intensidade no Brasil no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, explica, mas não justifica a ação.
A verdade é que, como registra Stedile, “em 400 anos de colonização, as populações mestiças que não eram escravas nem capitalistas foram constantemente empurradas para o interior do país, pois, nas regiões litorâneas, as melhores terras já estavam ocupadas pelas fazendas que se dedicavam à exportação”.
Isso deu origem a um campesinato pobre, desprovido de qualquer assistência, bem como de outra forma de inserção digna no processo produtivo rural.
Ademais, a partir da década de 1960, com o avanço da modernização no campo introduzida pela chamada Revolução Verde, a exclusão permaneceu e se ampliou, visto que a nova dinâmica produtiva expulsou milhares de camponeses e demais produtores do campo.
A concentração de terras no Brasil de hoje é, sem dúvida, resultado da perversa lei de terras de 1850, que comentei no último artigo, tratando-se de uma herança maldita.
Segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), disponibilizados pela Agência Senado: “atualmente, apenas 0,7% das propriedades têm área superior a 2 mil hectares (20 km2 ), mas elas, somadas, ocupam quase 50% da zona rural brasileira. Por outro lado, 60% das propriedades não chegam a 25 hectares (0,25 km2 ) e, mesmo tão numerosas, só cobrem 5% do território rural”.
Os números revelam uma distribuição desigual das propriedades no país. Mesmo com o avanço dado pelos governos progressistas dos últimos anos, a estrutura fundiária brasileira continua sendo elitista e perversa, privilegiando sempre o grande capital.
Atualmente, o país é um dos líderes mundiais da produção agropecuária, mas, como no passado, guardadas as devidas proporções, segue praticando e privilegiando o mesmo sistema de plantation , com monoculturas destinadas ao abastecimento dos mercados internacionais.
No atual governo, enquanto o agronegócio é acolhido com toda sorte de benefícios fiscais e perdões, os pequenos produtores familiares – mesmo com toda a comprovação de sua contribuição efetiva para a economia local, regional e nacional – seguem sendo pouco atendidos.
Portanto, para os agricultores familiares, camponeses, quilombolas, indígenas e demais trabalhadores rurais, a luta pela terra continuará. Nesse sentido, por mais que o que trago no texto de hoje pareça um discurso ultrapassado, ele não é.
Por isso, sigo defendendo que uma das soluções para a eliminação ou a redução da desigualdade social brasileira é a democratização do acesso à terra, afinal, terra é capital, terra é trabalho.
*Sociólogo
Foto: Vinícius Braga/Fotos Públicas