Um girassol da cor do teu cabelo

Aguinaldo Rodrigues

Publicado em: 16/11/2017 ร s 10:58 | Atualizado em: 16/11/2017 ร s 10:58

โ€œSe eu cantar nรฃo chore nรฃo, รฉ sรณ poesia; eu sรณ preciso de vocรช por mais um diaโ€

(Trecho da composiรงรฃo โ€œUm girassol da cor do seu cabeloโ€, de Lรด Borges)

 

Por Thomaz Antonio Barbosa*

Apesar das interjeiรงรตes, dos protestos e das palavras de ordem, e a partir destas, a democracia brasileira se configura em um dos melhores produtos da nossa pรกtria. Enquanto nas mรฃos do povo, poderรญamos muito bem exportรก-la, a comeรงar pela Venezuela e terminar pelo leste europeu.

A populaรงรฃo vota, elege, fiscaliza, nรฃo รฉ ouvida, mas luta. Faz o seu papel desde as urnas atรฉ o horรกrio nobre da telinha, torcendo pelo seu partido e candidato como se fora o artista favorito ou o time de futebol.

Nรฃo importa, o que conta รฉ que o cidadรฃo age.

Porรฉm, quanto passa para as mรฃos das autoridades, o paรญs mergulha na mais atrasada e lamacenta forma de decidir os temas nacionais.

O Judiciรกrio se automutila e se transforma em uma incongruรชncia na vida pรบblica brasileira, enxovalhando um histรณrico de muitas honras.

A escolha indireta ou por via de concurso para a magistratura e outras carreiras jurรญdicas, sem nenhuma participaรงรฃo popular, pรตe por terra toda e qualquer tentativa de fazer do Brasil um paรญs onde o desejo popular รฉ soberano.

Quem disse que pior nรฃo fica? O Congresso Nacional acaba de nos premiar com o maior ultraje ร  democracia de todas as รฉpocas, aprovando o financiamento pรบblico de campanhas eleitorais, perpetuando a monarquia absolutista dos donos de partidos. Agora nรณs vamos pagar a conta do triunfo de nossos algozes vitalรญcios.

O povo vai custear a realeza.

ร‰ desesperador do ponto de vista moral, dilata as nossas angรบstias. Os cacicados nรฃo me parecem tรฃo complexos assim, entretanto a covardia para com a pรกtria รฉ indecifrรกvel.

Porรฉm, a democracia รฉ poรฉtica, assim como โ€œa terra azul da cor do seu vestidoโ€. ร‰ redentora e nos alimenta.

Em uma noite dessas fui a um hotel da cidade onde se premiava os destaques do ano de 2017 em diversas รกreas, escolhidos por um grupo de nove jornalistas do naipe de certo veรญculo de comunicaรงรฃo.

Entre tantos homenageados, pude conversar com Raulzinho Teixeira, laureado como o vereador-revelaรงรฃo da cidade de Manaus, e Ruy Machado, um dos nossos artistas plรกsticos notรกveis, contemplado pelo conjunto de sua obra.

Antes de tomar um carismรกtico vinho tinto brasileiro, disse ao vereador: โ€œRaulzinho, essa sua premiaรงรฃo sรณ รฉ possรญvel graรงas ร  democracia, pois se fรดssemos uma monarquia, nรฃo estarรญamos aquiโ€.

O vereador, com sua sutileza peculiar, me respondeu mansamente abismado:

โ€œBarbosa, aqui no Brasil ainda existe monarquia. Partido polรญtico tem dono, o meu mandato sรณ consegui varando o bloqueioโ€.

Eu diria mais ainda que, no caso especรญfico do Amazonas, eles sรฃo dinastias familiares e, com esse financiamento absurdo, o papai, dono da sigla, cacique em chefe, nunca mais vai deixar de se eleger e levar ao reboque o seu rebento.

ร‰ o fim da alternรขncia de poder, dentro dos partidos e na sociedade.

Mais tarde, no decorrer da festa, em uma conversa franca e demorada, com traรงos europeus e indรญgenas, Ruy Machado, no auge de sua cรขndida intelectualidade, me diz que:

โ€œร‰ muito bom receber um prรชmio que tem o nome da minha cidade queridaโ€.

E aรญ vem a honraria para fazer justiรงa a quem surge do povo, a ascensรฃo do indivรญduo mais genuรญno, do abnegado que percorre a pรฉ as ruas da cidade dando sentido a sua utopia e do artista que faz de suas abstraรงรตes o significado concreto da vida, de uma forma virtuosa e mรกgica, que ao final nos homenageia โ€“ como se sua arte nรฃo bastasse – com uma bela declaraรงรฃo de amor ร  nossa Manaus.

A livre e sรกbia expressรฃo do pensamento tambรฉm รฉ uma instituiรงรฃo democrรกtica, tรฃo sรฉria e necessรกria โ€“ quem sabe mais ainda โ€“ quanto o parlamento ou a suprema corte.

A redenรงรฃo do povo de minha terra e suas formas de se relacionar entre si e com o seu imaginรกrio provavelmente seria a aquarela perfeita daquela noite, tรฃo simples, tรฃo singela, quanto os homenageados.

Mas, a democracia รฉ exata como seria dizer โ€œo meu pensamento tem a cor do teu vestido, como um girassol que tem a cor do teu cabeloโ€. Todavia, as notรญcias do leste lhe turvam a alma e o destino com a mesma sonoridade de โ€œvento solar e estrela do mar, vocรช ainda quer morar comigo?โ€.

E dito dessa maneira parece que nos foge tambรฉm de uma forma precisa e apavorantemente rรกpida.

Ruy Machado e Raulzinho Teixeira representam nรฃo somente as vontades e os delรญrios de nossa gente como tambรฉm a fantรกstica ascensรฃo da raรงa cabocla.

ร‰ inconcebรญvel nรฃo gostar de Ruy na sua representaรงรฃo doutrinรกria e civil de um amor desmedido por esse imenso Amazonas.

ร‰ impossรญvel para quem conhece o chรฃo desta terra nรฃo reconhecer a faรงanha de Raulzinho e sua chegada ao parlamento.

ร‰ humanamente inimaginรกvel que alguรฉm possa supor que por trรกs de tudo nรฃo tenha o dedo inefรกvel da democracia brasileira, merecedora urgentemente de nossos afagos.

Nรฃo seria insensato dizer que a mรฃo do artista รฉ a mente do povo, que os traรงos de Ruy submetem ร  nossa apreciaรงรฃo a peregrinaรงรฃo de Raul.

ร‰ a simbiose perfeita de um desejo que nos acalanta, o de melhorar a face rosada do paรญs por meio de nossas vontades, e isso somente nรณs podemos.

Nรฃo รฉ moderno um Estado que guarda em sua estrutura a aposentadoria compulsรณria, por exemplo, e o financiamento pรบblico de campanhas eleitorais.

Nรฃo รฉ democrรกtico a plebe custear a nobreza de uma maneira tรฃo absurda quanto injusta. Faremos o inverso, chega de privilรฉgios, nรฃo desistiremos da democracia!

… Mas, โ€œse eu morrer nรฃo chore nรฃo, รฉ sรณ a lua. ร‰ seu vestido, cor de maravilha nua.โ€

 

*O autor รฉ contador, formado em ciรชncias contรกbeis pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam); MBA em marketing pela Universidade Gama Filho; Mestrando em ciรชncias empresariais na UFP/Porto, em Portugal