Neuton Corrêa*
Era uma vez…
Vou começar assim: com “era uma vez”, mas a história é verdadeira. Aconteceu muito tempo depois de homem e macaco, cada um, ter ido para o seu galho. Obedeciam àquela sabedoria popular que diz: “cada macaco no seu galho” ou ao conhecimento que separa sociedade e cultura, homem e natureza, cru e cozido e por aí vai.
Fazia tanto tempo, tanto tempo que homem era homem e macaco, macaco; porém vira e mexe os dois estavam se encontrando.
Um desses encontros aconteceu no sítio onde meu pai e minha mãe escolheram para descansar na melhor idade. Foram para lá bem antes da aposentadoria deles, ao menos trinta anos antes.
O sítio, batizado com o nome de Santo Antonio, fica localizado no interior da Amazônia, no Município de Parintins, bem no meio da floresta, bem no meião. A frente dele é cortada por filetes de igarapé. Dizer que são filetes de água não é exagero. Meu pai se orgulha de falar isso à espera de algum danado lhe perguntar: “por que filetes d’água?” E ele prontamente responder: “aqui é uma nascente de rio”.
Os vizinhos do Santo Antonio são: à esquerda, o João Leite, que vive do cultivo de mandioca e da queimação de lenha para fazer carvão e vender na Vila Amazônia; à direita, meu tio Zé Corrêa e minha tia Menilza, a tia Mei, que cuida da criação de galinhas e porcos, enquanto tio Zé trata dos pés de açaí, que abundam em sua propriedade; o fundo do Santo Antonio é a floresta amazônica, nativa, majestosa, do jeito que a natureza deixou.
Por essa floresta, meu pai devota um respeito admirável. O respeito é tamanho que nunca mais entrou lá com um terçado nas mãos. Só retira madeira de árvore que já caiu e agora passou a cultivar espécies nativas que produzam esteios e as que lhe dão renda como andiroba, cumaru e castanha-do-pará. Às vezes, penso que tem medo da mata. Mas ele sempre me diz que não precisa mais do que tem e que não entra na floresta porque ela precisa de compreensão.
Meu pai se chama Aguinaldo Barros e minha mãe, Valda Corrêa. Eles compraram o Santo Antonio no ano de 1979. Não me recordo o mês, muito menos o dia. Só sei que quando se interessaram pelo sítio o rio estava cheio, muito cheio. E voltaram para fechar o negócio quando as águas já haviam baixado.
Fui nessa viagem que meu pai se encantou pelo sítio. Eu, mais que gostei. Para mim, era um paraíso: aquela água do igarapé, aqueles peixes do lago, aquela sinfonia dos passarinhos e dos bichos da floresta, as revoadas dos pássaros e o passeio enamorado dos casais de arara, de papagaios e de curicas nos fins de tardes e o jeito simples do povo de sempre cumprimentar a gente com um bom dia, uma boa tarde ou um boa noite. Tudo isso me encantava.
Uma coisa, porém me assustou: um barulho que ecoava floresta adentro e que eu não conseguia identificar. Era um barulho assustador. Parecia um forte vento soprando em meus ouvidos, semelhantes àqueles barulhos que a gente ouve quando se põe uma concha ou se encobre o ouvido com as duas mãos.
Era o barulho de um cantar ou de um gritar de uma voz grave, enfurecida com alguma coisa. Parecia o temporal do dilúvio se formando. Na primeira vez que ouvi aquilo pensei que fosse mesmo o fim do mundo. Mas, naquele mesmo dia que ouvi o fim do mundo cantando, suspirei aliviado quando o João Leite, que naquele tempo era garoto como eu, disse: “Esse capelão está muito longe”.
Ufa! O alívio imediato era porque a palavra capelão me remetia à figura do padre. Logo, imaginei que seria um padre andando por aquelas bandas. Mas o que faria um padre por ali? Ora, que tolice, um padre no meio da floresta? E segui ouvindo a conversa do João, do papai e de outras que pessoas a caminho do então desconhecido Santo Antonio.
Enfim, depois de horas, sem exagero, repito, depois de horas, chegamos ao lugar onde passei toda minha adolescência e para onde retorno nos dias hoje em minhas férias e folgas.
Chegando lá, os adultos que estavam com o papai, flexionaram um pouco os joelhos, abriram os braços em sinal de cautela e disseram, sussurrando com o dedo indicador direito no bico da boca: “Eles estavam aqui”. E eu, tremendo, perguntando de mim para mim: “Eles quem, Deus meu?”. Que bom que naquele tempo eu já havia feito a primeira comunhão e já sabia rezar o creio em Deus Pai, Todo Poderoso.
Havíamos acabado de atravessar o igarapé. Naquela época nem chegava a ser um igarapé nem um filete de água. Era apenas e tão simplesmente um olho d’água.
Estávamos subindo uma ladeirazinha, quando alguém começou a mostrar provas de que “eles” estiveram lá há pouco tempo.
Então, observei: galhos quebrados, restos de frutas ao chão, fezes frescas e secas e pêlos, muitos pêlos pretos e avermelhados presos nos troncos das árvores e sobre as folhas secas que encobriam o solo.
Ainda espantado, pensando que ali era a morada do fim do mundo, tive coragem de vencer a curiosidade perguntando o que era aquilo e, finalmente, ouvi pela primeira vez ouvi a palavra “guariba”. Mas o que era guariba?
– Guariba é um macaco. E acho que eles estavam morando aqui fazia muito tempo – disse um dos mateiros.
Para mim, era uma grande descoberta, porque a única coisa que sabia de macaco, até então, era que macaco era macaco. Naquele dia, porém, conheci um macaco que tinha nome. E nome bonito: “Guariba”.
Agora, escrevendo essas lembranças, já sei, consultando o dicionário Aurélio, que guariba é a designação comum aos símios platirrinos, cebídeos, do gênero Alouata , da América Central e do Sul, de coloração escura, caracterizados pela maxila inferior barbada, e sobretudo pelo grito peculiar. São frugívoros e vegetarianos, e vivem em bandos de mais de 12 indivíduos, guiados pelo macho mais velho, o capelão .
Três décadas se passaram e aquele barulho de fim de mundo voltou ao sítio Santo Antonio, hoje não mais isolado como era antes. Agora, chega-se lá até de carro. Os quase vinte quilômetros que se andavam para chegar ali foram reduzidos a doze quilômetros, por uma estrada aberta pela Reforma Agrária.
Meu pai encontrou os primeiros elementos do bando de macacos num fim da tarde. Estavam trepados em duas frondosas mangueiras plantadas exatamente no lugar onde encontramos pela primeira vez as guaribas. As mangueiras foram plantadas no mesmo ano que meu pai comprou o sítio, porém, as árvores nunca haviam produzido, apesar da insistência de meu pai.
E não foi por falta de trato. Papai fazia de tudo: simpatias em noite de Lua, puxava adubo orgânico para o pé das mangueiras, limpava as raízes, enfim, fazia tudo o que lhe mandavam, mas nada. Toda vez que passava pelas mangueiras, repetia: “um dia vou comer uma manguinha dessas árvores”.
A profecia do papai estava prestes a se confirmar. As duas mangueiras floresceram, floresceram, floresceram. A floração foi tamanha que o verde das folhas ficou pintado do branco da floração. E as frutinhas, que caíam antes de amadurecer, ficaram seguras aos galhos até a colheita.
Mas, naquele fim de tarde, as guaribas pareciam querer falar com o meu pai. Elas chegaram silenciosamente. Ele nem as notou. Ouviu apenas um barulho que, para ele, parecia a pisada de um gigante caminhando. Ele não sabia de onde o barulho vinha. Até que aguçou a audição e percebeu que as pisadas vinham da direção do igarapé.
Papai se aproximou lenta e atentamente até que percebeu o que era: um grupo de guaribas nas duas mangueiras atirando frutas verdes e maduras para o chão. Ele ficou enfurecido. Afinal, elas estavam desperdiçando aquilo que ele há décadas esperava. Mesmo furioso, ainda pôde parar para observá-las. As guaribas não comiam nada. Apenas apanham as mangas e as atiravam ao chão.
Depois de perceber isso, papai não contou conversa. Pegou uma lata velha, um pedaço de ferro e correu para debaixo das mangueiras fazendo barulho para espantar os macacos, que, no ato, não contaram conversa e saíram do Santo Antonio pulando de galho em galho.
Nesse dia, papai se recolheu mais cedo do que o de costume. Dormiu quando as estrelas ainda nem tinham espantado o Sol. Mas acordou no meio da noite com um barulho que para ele parecia uma ventania balançando as árvores e se aproximando da casa. E acordou a mamãe:
– Valda, está vindo um vendaval enorme.
Mamãe assentiu, acrescentando:
– E já vem com muita chuva.
Os dois se recolheram novamente. O temporal se aproximava da casa e estrondava ainda mais. Passou pela casa e depois de alguns instantes silenciou. Papai e mamãe estranharam a mansidão de ruídos que se fazia. Nem sapos coaxavam. Até que os dois começaram escutar a pisada do gigante que papai ouviu antes de dormir.
Dessa vez, porém, o gigante estava correndo, pois as batidas no chão ecoavam como um batuque. Papai abriu a janela, viu a festa que as guaribas faziam nas mangueiras, mas não teve coragem de pegar a lata velha e o pedaço de ferro. Ele percebeu que o bando era muito maior, mas muito maior, e ficou com medo de abrir a casa.
Os dois adormeceram e a primeira coisa que fizeram ao acordar no dia seguinte foi olhar as mangueiras. As guaribas haviam apanhado todas as frutas e as atirado ao chão. Não sobrou nenhuma. Nem as pequenas.
Até hoje, quando conta essa história verdadeira, papai repete: “Eu entendi o recado”.
* O autor é graduado em Filosofia e mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Ufam.