A decisão de o Ibama negar licença para a Petrobras prospectar petróleo na bacia sedimentar marítima que inclui a foz do rio Amazonas, uma opção que gerou intenso atrito interno ao governo, dá ao Presidente Lula a grande oportunidade de seu governo iniciar políticas públicas massivas de enfrentamento às mudanças do clima. Afinal, é exatamente isso que ele vem prometendo repetidas vezes desde quando participou da COP 27, a 27ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças de Clima , realizada em novembro passado no Egito.
Ao posicionar-se daquela forma, Lula puxou para si a importante responsabilidade histórica de colocar o Brasil entre os países que estão à frente de uma profunda mudança na forma de acumular e distribuir riqueza e renda . Uma alteração na economia que começa pela eliminação acelerada da extração e do uso de combustíveis fósseis, como principal caminho para frear a crise climática.
Assim, para ser consequente com as suas palavras e ambições de liderar o Sul Global no processo que vem sendo chamado de “transição energética “, Lula precisa fazer escolhas que definirão hoje o futuro do Brasil – e, em boa medida, também do planeta inteiro.
Além de garantir a autonomia de as agências ambientais subsidiarem a política energética nacional, o que se verificou no caso da bacia da foz do Amazonas , e de recompor a capacidade funcional técnica desses órgãos desmontada entre 2019 e 2022, o governo atual deve ampliar a todo o programa brasileiro de exploração de combustíveis fósseis importantes salvaguardas que foram abandonadas no período anterior.
Pode começar determinando que a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) reveja os critérios de autorização de toda a atual 17ª Rodada de Licitações de Petróleo e Gás Natural e o 2º Ciclo de Oferta Permanente de Petróleo e Gás. Ambos tiveram início em dezembro de 2020 e marcaram a retomada da venda de blocos para exploração de petróleo e gás no bioma Amazônico, iniciado sob o governo do ex-Presidente Jair Bolsonaro e do ex-Ministro da Economia, Paulo Guedes .
Em sua visão fiscalista, ambos trataram a 17ª Rodada e o 2º Ciclo como forma de levantar recursos no curtíssimo prazo, desvinculados de qualquer política energética ambientalmente sustentável e socialmente justa, ou de uma consequente política climática, algo que há décadas ocupa lugar central em todas as discussões globais desse tema.
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Exploração com risco
Para alcançar seu objetivo, o governo anterior decidiu, através da ANP, licitar 92 blocos com risco exploratório, localizados em 11 setores das bacias sedimentares marítimas de Campos, Pelotas, Potiguar e Santos, além das bacias terrestres do Amazonas e do Solimões. Porém, ignorou a necessidade de um importante instrumento de produção de subsídios para o cotejamento de vantagens comparativas de o Brasil permanecer na velha extração de petróleo: a Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS).
A AAAS foi substituída por uma simplória Manifestação Conjunta dos Ministérios de Minas e Energia (MME) e do Meio Ambiente (MMA), instrumento que vem embasando as licitações ocorridas no âmbito da 17ª Rodada e do 2º Ciclo.
A manifestação ministerial visa somente a acelerar o processo de exploração de combustíveis fósseis , descolando-o da necessidade de realização de estudos ambientais pormenorizados que apontem riscos de imprevisíveis consequências ambientais sistêmicas e incontornáveis, presentes naturalmente em toda atividade petrolífera.
A AAAS, de caráter orientativo, é multidisciplinar, tem abrangência regional e pode inclusive apontar a eventual inaptidão de uma região ao desenvolvimento de determinadas atividades econômicas, em função de uma série de características naturais e ou associadas à presença de diferentes grupamentos humanos.
Configura-se a AAAS, portanto, como um instrumento técnico de mitigação de riscos em potencial – algo que somente poucos países conseguiram efetivar e do qual não pode prescindir uma Nação dedicada a dar a sua contribuição para enfrentar as mudanças no clima.
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Potencial amazônico
Em especial o Brasil, que tem mais de 50% de seu território no bioma amazônico, fator crucial para ser considerado país megadiverso em termos socioétnicos e biológicos.
Temos, na região amazônica, uma complexíssima teia de populações e regiões vulneráveis, incluindo inúmeros povos indígenas e tradicionais ; populações urbanas que somam aos milhões; disponibilidade massiva de água doce em superfície; e inúmeras outras características únicas e estruturantes da nacionalidade brasileira.
Para toda e qualquer política de crescimento econômico, portanto, urge considerar prioritariamente o atendimento às necessidades e desejos dessas populações. Não é recomendável que processos de origem exógena sejam implantados para atender apenas aos interesses de forças estranhas àqueles territórios.
Nesse sentido, tome-se como breve exemplo a exploração de petróleo e gás natural na região da cidade de Silves (AM), que em 2021 o IBGE estimou ter cerca de 9300 habitantes. Em Silves ocorre um acelerado processo de implantação desse projeto fóssil, com a extração de gás em área que já afeta a comunidade mura .
Em seu auge, essa intervenção econômica pode, como se comenta, atrair à região até 5 mil operários, radicalizando as demandas por todo tipo de serviço público e reproduzindo alguns dos erros trágicos e irreversíveis já verificados nas construções de megaprojetos amazônicos como as hidrelétricas de Tucuruí (1984), Balbina (1989) e Belo Monte (2016).
Respeito aos amazônidas
A tarefa histórica que compete e foi assumida pelo atual governo passa por garantir emprego e renda à população brasileira que vive nos complexos e diversos estados amazônicos.
Mas, para ser consequente com o compromisso assumido na COP27 , este governo tampouco poderá fazê-lo, como até hoje ocorreu, considerando somente a replicação acelerada do capital ultra concentrado em poucas empresas.
Deve olhar e escutar, também e prioritariamente, como aliás determinam a legislação nacional e acordos internacionais assinados e ratificados pelo Brasil, a enorme população que há muito habita e contribui decisivamente para construir a região amazônica na forma como a conhecemos.
Os autores são mestre em gestão ambiental e diretor da 350.org na América Latina (*) e jornalista e doutorando em história contemporânea (**)
Foto: Greenpeace/ Divulgação