Com todo o cuidado que a situação exige, para não criar ambiente trágico para além do que a realidade já oferece, autoridades e conhecedores da Amazônia já admitem, forçadamente, que o servidor da Funai e o jornalista estrangeiro desaparecidos desde o domingo (5), na região do Vale do Javari, no norte do Amazonas, podem ter sido assassinados.
“Não descartamos a possibilidade de ter acontecido um crime”, afirmou hoje (7) o delegado Guilherme Torres, sem citar homicídio. Ele é o chefe da Polícia Civil do Amazonas no interior do estado. Junto com policiais civis, militares e bombeiros, ele foi enviado à região para as buscas.
Torres conversou com duas pessoas, moradoras do Javari, que colaboraram com informações. Eles teriam sido os últimos a falar com Bruno Pereira e Dom Phillips, antes que estes saíssem em viagem.
“De fato, há suspeita de uma ameaça que está sendo investigada”, afirmou Torres.
Tal ameaça pode ser a que o servidor do governo federal vinha sofrendo. Conforme a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Pereira era vítima de frequentes ameaças por sua atuação, principalmente de madeireiros e garimpeiros.
Por causa disso, Eliésio Marubo, procurador jurídico da Univaja, crê que Pereira e Phillips foram emboscados por criminosos. Para ele, Pereira conhecia a região como a palma de sua mão e não se perderia. Ressalva o dirigente indígena, no entanto, que eles possam ter sofrido algum contratempo e estar em local sem poder se comunicar.
Contudo, criticou duramente os órgãos dos governos. Em primeiro lugar, pela demora a tomar uma atitude assim que foram informados do desaparecimento. Principalmente o Exército, que é quem ele considera ter a estrutura exigida para as buscas.
“Se esse recurso tivesse sido empregado no domingo mesmo, já teríamos informações”.
Marubo, em segundo lugar, disse que é fake news que uma força-tarefa começou a agir de imediato. Ele afirmou que qualquer tempo desperdiçado dificulta o resgate.
“Não teve esse envolvimento das forças do Estado brasileiro nesse primeiro momento”, afirmando que o governo se preocupou em fazer “notinhas para a imprensa”.
As ações efetivas de busca só começaram quando a mídia começou a noticiar o episódio, segundo o indígena.
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Apreensão e notícias ruins
Essa preocupação do dirigente da Univaja é compartilhada por João Pedro Gonçalves. Ele é ex-senador do PT-AM e ex-presidente da Funai .
Conhecedor do cenário do Vale do Javari, Gonçalves também teme que o pior possa ter acontecido.
“Digo da minha apreensão com essa situação… As notícias que tenho agora, de ontem pra hoje, são preocupantes, muito preocupantes”.
A informação de que o servidor da Funai é profundo conhecedor da região também é reafirmada pelo ex-dirigente do órgão indigenista.
Além disso, cobrou responsabilidade do governo com o seu servidor porque as ameaças que vinha sofrendo já eram de conhecimento da Funai. Para o político, o órgão é omisso.
“Sinceramente espero que o Bruno [Pereira] e o jornalista estejam vivos, mas há comentários muitos ruins acerca do desaparecimento. Estou muito apreensivo”.
Atitude reprovada
O presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), na oportunidade para se manifestar sobre o fato que causou preocupação aos amazônicas, não se saiu bem. Pareceu mostrar o desprezo de sempre pelo problema alheio.
E foi além. Chamando a região de “selvagem”, afirmou que lá “tudo pode acontecer”, inclusive que os dois devam ter sido “executados” .
Seu distanciamento das causas da Amazônia chega ao ponto de suas palavras conflitarem até mesmo com seu próprio governo. O Ministério das Relações Exteriores, por exemplo.
“Na hipótese de o desaparecimento ter sido causado por atividade criminosa, todas as providências serão tomadas para levar os perpetradores à Justiça”, diz trecho de nota oficial do Itamaraty.
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Tensão constante
Essa parte do Amazonas, na fronteira do Brasil com Peru e Colômbia, é de muita tensão e conflitos, constantemente.
Indígenas e moradores tradicionais sofrem com o crescimento, ano após ano, da exploração de madeira e peixes, do narcotráfico e suas facções criminosas, além da evasão de riquezas minerais por garimpos que se proliferam sem serem importunados.
A ausência das forças que deveriam garantir a “soberania nacional” é quase que total em uma região continental. Só a reserva indígena do Javari tem 8,5 milhões de hectares demarcados.
Crimes de diversas ordens são comuns na região, e às vezes partem dos próprios agentes do governo federal.
Por exemplo, no ano passado, servidor da Funai ameaçou tocar fogo em índios. Não fosse a pressão da mídia e de parlamentares é provável que o governo nada fizesse.
Em 2019, um funcionário público federal foi vítima de crime de encomenda nas ruas de Tabatinga, outra cidade da tríplice fronteira. Caso que até hoje não teve satisfação à sociedade.
Foto: reprodução/internet