*Raquel Caetano
Ilustrações: Enã Nogueira
O meu ingresso no segundo ano do Ensino Médio tinha tudo para ser mais um ano letivo comum, se não tivesse aparecido aquela figura de estatura média, meio calvo e de voz enrouquecida, logo no primeiro dia de aula, e influenciado, a partir dali, o meu interesse pela leitura, por filmes, pela música, como também a minha escolha pela vida acadêmica, mais tarde, no curso de história da Universidade de Federal de Pernambuco.
Talmon Trajano foi um desses professores que nem de longe se pode dizer que apresentava uma aula comum. Comum mesmo era o fato de ter sempre a sala lotada, pois alguns alunos, de outras turmas, “se infiltravam” para vê-lo conversar. Sim, a explanação da aula era sempre em tom de conversa apaixonada, de uma pessoa que mais parecia ter vivido na época em que narrava o fato histórico, e que no diálogo fazia com que cada olhar compenetrado naquele discurso tivesse a sensação de assistir a um filme narrado.
Pois bem, alguns anos se passaram e mesmo essas pessoas que de uma forma ou de outra marcam o nosso percurso caem no esquecimento, visto que a vida vai seguindo o seu dinamismo e nos apresentando outros caminhos. No entanto, o lapso é presente até que aconteça algum fato que nos resgate a memória. No meu caso se deu ao iniciar a leitura despretensiosa do livro que traz como título a emblemática rainha inglesa, Ana Bolena, escrito por Bruna Chíxaro.
O reinado de Ana Bolena tem sido alvo de diversos estudos históricos, de produção cinematográfica, livros etc. Os pontos de vista sobre a rainha Ana dos Mil Dias, como ficou conhecida, muitas vezes divergem, mas o ponto em comum sempre gira em torno da personalidade de Bolena, conhecida por sua ambição, altivez e sedução, que levaram o rei Henrique a dissolver o matrimônio com Catarina de Aragão, filha dos reis católicos da Espanha, Isabel de Castela e Fernando de Aragão, constituindo matrimônio fora da linhagem real.
Para a efetivação do casamento, o rei apaixonado e esperançoso de um herdeiro, pois dos cinco filhos que teve com a rainha Catarina, apenas a princesa Maria Tudor sobreviveu, Henrique VIII colocou a nação de “cabeça para baixo”. O primeiro ato que marcou a história do povo inglês foi o rompimento com a Igreja Católica, que se opunha fortemente tanto à aceitação do divórcio dos reis aclamados como do reconhecimento da nova união matrimonial.
O rompimento com Roma teve algumas consequências, por exemplo, o surgimento do Anglicanismo, em que o próprio rei se declarou chefe supremo da nova igreja da Inglaterra. Essa nova ordem trouxe consigo influências ou ideias da Reforma Luterana. Outro efeito decorrente foi a soberania de Henrique VIII sobre a nação inglesa, que dispensava, naquele momento e contexto, que as ações do governo passassem pelo crivo papal. Com isso, a Inglaterra tornou-se uma nação independente e economicamente mais forte, pois todos os bens e terras pertencentes à igreja passaram para a coroa.
O enlace conturbado em contexto religioso e político não trouxe à Ana Bolena dias melhores. Parte da população inglesa nunca aceitou a rainha consorte. O mesmo aconteceu com membros da corte e do parlamento inglês. Além disso, o tão sonhado herdeiro do trono não chegou. Como a primeira esposa, Ana deu à luz com vida a uma menina, Elizabeth. Somado a outros fatores foi desprezada aos olhos de Henrique, substituída e condenada à morte.
Como Bruna Chíxaro afirma, o livro não se trata de um ensaio histórico sobre o reinado de Ana Bolena e Henrique VIII. Não existe em suas páginas uma busca pela tradução “real” do período, e muito menos o relato imparcial de um historiador. Talvez resida aí o tom de conversa adotado pela autora que, livre das amarras da imparcialidade, põe seu ponto vista e deixa presente nas entrelinhas seu fascínio pelo período histórico inglês, o que me deu a sensação de estar ouvindo o memorável professor Talmon conversar.
A autora em sua narrativa também consegue fazer do seu texto uma leitura leve, com uma linguagem simples, sem que, com isso, diminua a importância e consistência do seu ponto vista sobre Ana Bolena. Ao contrário, a linguagem informal soma importância, pois amplia o público leitor, chegando também aos mais jovens. Ao concluir a leitura do livro, sussurrei para mim mesma: valeu, Bruna, a conversa foi bastante agradável e o teu livro uma viagem prazerosa!
*Raquel Caetano é Jornalista.