Emerson Maia não morreu. Esse não é o desmentido de uma morte, porque está escrito nas estrelas que os poetas não morrem, eles se afastam do convívio dos mortais terráqueos para poetizar em outros lugares, em outras galáxias.
Hoje, por volta de 1h desta sexta-feira, dia 14, quando o poeta e cancioneiro popular parintinense partiu, aos 66 anos, para a sua morada definitiva, ele já havia cumprido a sua magnânima missão de celebrar a vida, entre as quais, a vida humana, por meio da alegria, da paz e da solidariedade.
Morre aos 66 anos de idade o compositor Emerson Maia
Filho de Antônio Maia e dona Ladir Maia, Emerson poderia ter seguido a profissão do pai, um comerciante bem sucedido. Mas nesse ramo, ele atuou para conseguir o suficiente para se tornar um poeta bem sucedido.
Emerson, por aqui, versejou e cantou com a força do filho da aldeia que precisava ser ouvido pelo mundo.
O poeta se tornou conhecido, mundialmente, como autor de Lamento de Raça, canção de boi-bumbá que denunciou o extermínio de árvores e animais pelas queimadas na Amazônia, em 1996. Desde esse ano ele passou a ser reconhecido por ecologistas e engajados na causa verde de todo o planeta.
Legado de Emerson Maia é homenageado por personalidades do Estado
O que o mundo talvez não saiba é que a verve ecológica dele se manifestou muito antes da efervescência da defesa da floresta amazônica, na década de 1990. Ainda jovem, no começo da década de 1980, o poeta parintintin compôs blues chamada Meu Mundo Verde , uma letra de belas metáforas que denuncia os estragos reais de uma das metáforas do capitalismo, o progresso, sobre os ecossistemas amazônicos.
Com essa música, ele ganhou o Festival da Canção de Parintins de 1985, evento que fazia tanto sucesso quanto o festival folclórico e, assim, atraía artistas de outros estados do Norte.
“Emerson Maia assumiu esse compromisso com a defesa da Amazônia muito antes da causa virar moda no mundo”, esclarece o compositor Fred Góes, amigo e compadre do poeta.
Aliás, situa Fred, Meu mundo verde foi composta no começo de 1980, enquanto a primeira reunião global de chefes de estado, convocada pelas Nações Unidas, para tratar da degradação do meio ambiente ocorreu em 1972, em Estocolmo, Suécia.
Fred lembra que os ares da Conferência de Estocolmo só atingiram o Brasil, a partir de São Paulo, e se transformam em engajamento ecológico no final da década de 1970.
“Eu estava em São Paulo e testemunhei o surgimento dos movimentos ecológicos nas universidades e no meio artístico”, acentuou.
Fred cursou Jornalismo na Faculdade Casper Líbero, trabalhou em jornais paulistanos e fez parte do primeiro elenco do Raíces de América, grupo de música latino-americana engajada no combate aos governos ditatórias da América do Sul.
“Isso é muito importante: Emerson Maia, na sua ‘ilha desolada’, estava antenado com o mundo, mesmo com todas as dificuldades de comunicação da época. Ele possuía uma percepção e uma sensibilidade poética incomum, algo que só acontece com pessoas iluminadas”, afirmou o artista.
A historiadora Hiana Rodrigues, que pesquisou o Festival da Canção de Parintins, descobriu que Emerson liderou um movimento de vanguarda – juntamente com Tony Medeiros, Paulo Dú Sagrado, Fred Góes e Carlos Portilho, entre outros – que viria a modificar a estética musical do boi-bumbá de Parintins.
Governo do Amazonas exalta importância de Emerson Maia para a cultura
Os traços vanguardistas estavam presentes, principalmente nas letras de Emerson, que não poupavam às agressões ao jeito de viver dos povos amazônicos.
Ela lembra que no mesmo festival da campeã Meu mundo verde , ele teve, também, uma música classifica em quarto lugar, Pregador , uma letra pela qual ele se expressa incomodado, irado e revoltado com o status quo .
“Há relatos de que ele inclusive foi preso por conta dessa letra”, informa Hiana. Ela revela que tentou entrevistá-lo, mas não obteve sucesso. Ele estava arredio ao tema.
No boi-bumbá de Parintins as contradições da questão amazônica só vieram se evidenciar a partir da década de 1990, sob a influência da Conferência do Rio de 1992, a Eco-92, que focou meio ambiente versus desenvolvimento.
Os vanguardistas ganharam fôlego diante dos grupos tradicionais.
“Os bois sempre se referiam à Amazônia pela exaltação às suas belezas e sua importância para a vida humana, não confrontavam a realidade que lhe impõe o progresso, como fez Emerson em Meu mundo verde ”, analisou Fred.
Lamento de raça
Por isso, Lamento de raça é considerada a toada que marcou o boi-bumbá de Parintins, por intermédio do Garantido, como revista folk defensora dos ecossistemas amazônicos. Essa toada sugere uma virada conceitual para a percepção popular da ecologia amazônica, pois nela, a vida é definida como complexo de vidas e nessa tessitura todas as vidas importam.
Vidas humanas e outras vidas estão imbricadas, umas existindo em razão das outras, enredadas poiéticamente – pela criação permanente. É por isso que o poeta enfatiza que, com o pé de sapopema pegando fogo, a sua infância também vira lenha.
No contexto das queimadas as vidas se encontram no mesmo caos. Todas correm o mesmo risco de extinção, inclusive a dos humanos, sobre as quais recaem a responsabilidade de deter a possível catástrofe do planeta anunciada nas cosmologias indígenas e confirmada pela ciência.
Não é à toa que Lamento de raça extrapolou as arquibancadas do bumbódromo de Parintins (AM), onde os bois-bumbás Caprichoso e Garantido se apresentam no final de junho, para disputar o festival folclórico que começou há 55 anos.
Nota 10
Lamento de raça deu nota 10 ao item toada, letra e música para o Garantido em vários festivais, nas vozes de David Assayag e Sebastião Jr.
Das galeras, o apelo de Emerson ecoou em manifestações universitárias, estádios de futebol, procissões de santos populares e animou, também, o estado moral de bombeiros em atuação de combate a incêndios na floresta amazônica.
Assim, Meu mundo verde e Lamento de raça podem representar, na impossibilidade de reunir neste espaço todo a produção poética emersoniana, as preocupações de um ser humano consciente de que este planeta é compartilhado entre as vidas que nele existem.
O progresso que chegou por aqui, como denuncia em Meu mundo verde , é corrosivo, causa o caos e desestabiliza os ecossistemas. A cantora Lea Costa, que foi aluna do poeta no Colégio Batista de Parintins, revela que o conceito de corrosão era sempre abordado por ele em sala de aula.
O tema se reafirma em Lamento de raça, que pega carona na visibilidade midiática do festival folclórico de Parintins, com as transmissões do espetáculo de Caprichoso e Garantido pela TV e pela internet.
O ninho dos poetas
Emerson Maia pertenceu à geração de novos poetas que ainda conviveu com o fundador do boi-bumbá Garantido, o poeta e cancioneiro Lindolfo Monteverde, a quem dedicava respeito e admiração.
Os perrechés de raiz extravasam o orgulho de tê-lo como uma pessoa de casa com essa frase; “Ele não sai daqui da Baixa!”. Baixa se refere à Baixa da Xanda, berço de fundação do boi-bumbá Garantido, também conhecida como Baixa de São José.
O compositor Paulo Dú Sagrado, por sua vez, pensa que o nome mais adequado para o lugar seria O ninho dos poetas , por razões obvias: “Na Baixa a poesia flui como o rio Amazonas que segue rumo aos oceanos”.
Em 6 de julho de 1979, quando Lindolfo se metamorfoseou em estátua de barro com “pernas de passarinho e cabeça de pica-pau”, Emerson apareceu cedo no Ninho dos poetas .
Parou na Mercearia Martins Filho , puxou uma cadeira de embalo e um banquinho, onde descansou uma garrafa de cerveja e copos para ele e para os amigos.
De frente para a massa amarelada de águas do rio Amazonas, ele afinou o violão e ensaiou os primeiros acordes para a música de despedida do amigo e mestre que estava sendo velado no terreiro onde o Garantido nasceu, em 1913.
“Silêncio, tudo está consumado/ O nosso amo amado partiu e deixou o São José/ A voz que sempre lhe foi fiel/Agora estronda nos bosques, nas pradarias do céu […]”.
“Tive a felicidade presenciar esse momento”, conta o professor Ilmar Martins, filho seu Élcio Martins e dona Nilce de Souza Martins, donos da mercearia. Ilmar é casado com Antônia Monteverde, neta paterna de Lindolfo Monteverde.
Dali, depois de um rápido ensaio, ele e os amigos foram homenagear Lindolfo com uma cantoria de despedida. Ilmar até hoje se surpreende com fato de ter gravado a música e a letra em sua memória enquanto eram elaboradas ali, na sua frente. “Nunca mais esqueci essa toada”, disse.
Essa música é considerada hoje o hino da família Monteverde, por isso sempre tocada nos eventos nos quais a memória de Lindolfo é reverenciada.
O escritor e professor Dé Monte Verde, neto de Lindolfo, postou hoje essa poesia de Emerson em sua conta no Facebook sem mais palavras.
“Com isso, nós demonstramos a nossa imensa tristeza pela passagem de uma pessoa que gostamos muito”, explica a jornalista e professora Suzan Monteverde, presidente da Associação Regional Lindolfo Monteverde, que resguarda o legado material e imaterial do fundador do boi-bumbá Garantido. Ela é bisneta materna de Lindolfo.
Suzan afirma que Emerson nutria uma paixão avassaladora pelo Garantido, fato que o fazia se distinguir como “um dos principais poetas da Baixa”, mesmo morando do outro lado da cidade, no reduto do Caprichoso. “Ele criou identidade com o nosso boi por intermédio do amor e da paixão, por isso a sua vida também está vinculada amorosamente à Baixa”.
Levantador de toadas
Após a morte de Lindolfo, Emerson assumiu a função de levantador de toadas do Garantido até a chegada de David Assayag, na segunda metade da década de 1980.
No ano passado, ele se apresentou como compositor contratado pelo Caprichoso, mesmo assim, jamais foi destratado pelos perrechés, com os quais se reunia, costumeiramente, no Ninho dos Poetas , “para matar a saudade de casa”, como define Suzan.
“Hoje o silêncio tomou conta da Baixa. É assim que reverenciamos a passagem dos nossos poetas. A tristeza tomou conta dos nossos corações”, acentua Suzan.
Na conta do poeta no Facebook, agora a sua lápide virtual, está escrito: “O meu lado de índio é o melhor que eu tenho”.
E assim ele foi, assim ele é, assim ele será.
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Foto: Alex Fideles, em 27 de junho de 2019