Nova Lei de Improbidade Administrativa separa o joio do trigo

As alteraรงรตes tรชm causado importantes discussรตes no mundo jurรญdico e tambรฉm na mรญdia

Mariane Veiga

Publicado em: 14/10/2021 ร s 12:43 | Atualizado em: 14/10/2021 ร s 12:53

Recentemente seguiu para sanรงรฃo presidencial o projeto de lei, aprovado pelo Congresso Nacional, que modifica substancialmente a Lei 8429/90, conhecida como a Lei de Improbidade Administrativa. As alteraรงรตes tรชm causado importantes discussรตes no mundo jurรญdico e, tambรฉm, na mรญdia. Uma das mais sensรญveis foi a exclusรฃo do ato culposo do agente pรบblico, que cause prejuรญzo ao erรกrio, como ato de improbidade administrativa.

Nos termos do art. 37, ยง 4ยบ, da Constituiรงรฃo Federal e da Lei n. 8.429/1992, qualquer agente pรบblico, de qualquer dos Poderes da Uniรฃo, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municรญpios pode ser punido com a pena de perda do cargo que ocupa, pela prรกtica de atos de improbidade administrativa. Mas o que vem a ser um ato de improbidade?

O ministro Napoleรฃo Nunes Maia, do Superior Tribunal de Justiรงa (STJ), em julgamento de um Agravo em Recurso Especial, afirmou que: โ€œA Lei de Improbidade Administrativa, como todos sabemos, nasceu com a finalidade de combater e sancionar as condutas dos agentes de atos que afetem a moralidade e maltratem a coisa pรบblica; os seus comandos, todavia, sรฃo bastante abertos, havendo, portanto, a necessidade de utilizรก-la com certa prudรชncia, a fim de que o prรณprio instrumento jurรญdico nรฃo seja enfraquecido e se torne impotente, vulgarizando-se pelo excesso de sua utilizaรงรฃo ou, atรฉ mesmo, que seja utilizado como mero mecanismo de repercussรฃo nos elementos de disputa e competiรงรฃo eleitoral, por exemploโ€.

Conforme preleciona o Ministro Garcia Vieira (REsp 213.994), a Lei de Improbidade โ€œalcanรงa o administrador desonesto, nรฃo o inรกbilโ€.

O artigo 10 da Lei de Improbidade, com a redaรงรฃo atual, aponta a possibilidade do reconhecimento de ato de improbidade quando o agente pรบblico causa dano ao erรกrio culposamente, ou seja, quando nรฃo age com a intenรงรฃo de causar o dano, mas por negligรชncia, imprudรชncia ou imperรญcia grave causa um prejuรญzo ao ente pรบblico. Seguindo a atual legislaรงรฃo, temos a figura do โ€œdesonesto por culpaโ€.

O ministro Napoleรฃo Nunes Maia, antes mesmo do inรญcio da tramitaรงรฃo do projeto de lei, jรก sinaliza sua preocupaรงรฃo em relaรงรฃo a imputaรงรฃo de ato de improbidade por culpa do agente pรบblico, senรฃo vejamos: โ€œO elemento subjetivo (dolo ou culpa) exigido para a configuraรงรฃo dos atos de improbidade traz ร  discussรฃo a proposiรงรฃo dilemรกtica de saber se o cometimento culposo dessa infraรงรฃo administrativa รฉ (ou nรฃo) idรชntico, similar ou igual ao cometimento doloso e, portanto, passรญveis ambos da mesma sanรงรฃoโ€.

Com efeito, em boa hora o novo texto exclui a imputaรงรฃo de ato de improbidade por culpa do agente pรบblico. Nรฃo se pode olvidar que improbidade administrativa รฉ ato de desonestidade do gestor pรบblico no trato da coisa pรบblica. Ato de improbidade, por exemplo, รฉ comprar camisinha feminina, para fornecer no Sistema รšnico de Saรบde, pagar antecipadamente e saber que a empresa contratada nรฃo irรก entregar e anuir com isso.

No entanto, muitos irรฃo pensar que isso resultarรก em impunidade para o mal gestor ou para gestor incompetente. Nรฃo รฉ verdade! O gestor que agir de forma imprudente ou negligente na conduรงรฃo da coisa pรบblica e causar prejuรญzo deverรก ser responsabilizado civilmente, devendo reparar o dano causado, mas nรฃo sofrerรก as graves sanรงรตes da Lei de Improbidade Administrativa, que devem ficar reservadas, exclusivamente, para o agente que deliberadamente causar prejuรญzo aos cofres pรบblicos.

Dessa forma, a alteraรงรฃo legislativa nรฃo gerarรก impunidade para o gestor pรบblico desonesto, mas sim deixar de โ€œmedir com a mesma rรฉguaโ€ o agente negligente, imprudente ou imperito que causa prejuรญzo aos cofres pรบblicos com a sua falta de cuidado. Repito, isso nรฃo importarรก na ausรชncia de puniรงรฃo, pois o gestor poderรก ser acionado em uma aรงรฃo civil de reparaรงรฃo de dano, mas nรฃo as sanรงรตes de perda do cargo ou funรงรฃo pรบblica, impossibilidade de contratar com a administraรงรฃo por um perรญodo etc.

Cumpre destacar, por oportuno, que a ofensa ao artigo 10 da Lei de Improbidade impรตe hoje ao gestor pรบblico que age com dolo ou com culpa a mesma penalidade, ou seja, impรตe indistintamente as sanรงรตes do artigo 12, II, da LIA, que importam em severas restriรงรตes ao causador do dano, consoante se depreende do texto legal em vigor: โ€œII – na hipรณtese do art. 10, ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimรดnio, se concorrer esta circunstรขncia, perda da funรงรฃo pรบblica, suspensรฃo dos direitos polรญticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de atรฉ duas vezes o valor do dano e proibiรงรฃo de contratar com o Poder Pรบblico ou receber benefรญcios ou incentivos fiscais ou creditรญcios, direta ou indiretamente, ainda que por intermรฉdio de pessoa jurรญdica da qual seja sรณcio majoritรกrio, pelo prazo de cinco anos.โ€

Diversamente do que apontam os cavaleiros do apocalipse, nesse ponto especรญfico da alteraรงรฃo da Lei de Improbidade, nรฃo se vislumbra retrocesso ou causa de impunidade, mas sim uma correรงรฃo de curso. Ou vocรชs acham razoรกvel e proporcional tratar de forma igual o gestor desonesto e o descuidado?

Nรฃo hรก como finalizar sem relembrar saudoso Hely Lopes Meirelles: โ€œEmbora haja quem defenda a responsabilidade civil objetiva dos agentes pรบblicos em matรฉria de aรงรฃo de improbidade administrativa, parece-nos que o mais acertado รฉ reconhecer a responsabilidade apenas na modalidade subjetiva. Nem sempre um ato ilegal serรก um ato รญmprobo. Um agente pรบblico incompetente, atabalhoado ou negligente nรฃo รฉ necessariamente um corrupto ou desonesto. O ato ilegal, para ser caracterizado como ato de improbidade, hรก de ser doloso ou, pelo menos, de culpa gravรญssima.โ€

*O autor รฉ advogado, latin legum magister (LL.M) em direito penal econรดmico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa โ€“ IDP, especialista em blanqueo de capitales pela Universidade de Salamanca e professor convidado da Escola Paulista de Direito

Foto: Edilson Rodrigues/Agรชncia Senado